segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O longo inverno

Não sei bem ao certo a razão disso, mas sinto que o longo inverno está acabando. Assim que descobri o vazio, que nada mais era do que ter adquirido a noção do quanto bancar o herói havia me custado; nada menos que a minha própria humanidade. Não que não tivesse ela dentro de mim, só não sabia mais como me expressar honestamente. Eu era apenas o que esperavam de mim, o que eu esperava de mim, mas no fundo não passava de uma casca vazia. Eu era a fortaleza onde os outros buscavam abrigo e inspiração. Porém, lá estava eu preso no calabouço, amordaçado e quebrado. E quando enfim escapei do calabouço eu era algo mais do que um ser humano, era dono de uma força de vontade indomável, mas ao mesmo tempo algo menos, como se o próprio sol e tudo considerado normal me queimasse. Então descobri que por mais que ardesse por dentro, querendo tudo que nunca tive de uma só vez, meu corpo e mente estavam exaustos. Tinha que aprender a ser humano, algo que ninguém deveria precisar fazer, e além disso precisava saber ficar em pé por conta própria, sem ao menos poder contar com a ajuda do meu corpo para tanto. Agora todo dia eu sento no meu trono como o rei das minhas terras e observo os últimos dias do meu longo inverno passarem um a um, perseverando diante de cada novo obstáculo que aparece no meu caminho, pois o verão um dia irá chegar e nesse dia vou me erguer, senhor de mim mesmo. Só preciso suportar o longo inverno e torcer para estar pronto quando a hora chegar.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Revolução

A data é de festas, mas apesar de tudo, dos amigos, da família, da boa comida, sinto que não tenho muitos motivos para festejar. Se houve o barulho de fogos eu não escutei, lembro apenas do temporal que inundou as ruas e dos relâmpagos que iluminaram os céus, tal qual a revolução que tomou conta de mim nesses últimos dias. Porém, essa permanece dentro de mim sem afetar ninguém, porque prefiro me afastar quando o sorriso no meu rosto começa a soar falso demais. Na tentativa de parecer mais verdadeiro me encho de fogo líquido e dou risadas sem nem saber o porquê, então esqueço por um breve momento a frieza daquele par de olhos escuros como lascas de obsidiana, a voz que me pede para segurar o rojão, simplesmente porque eu aguento. Me pergunto se tudo isso é visível aos olhos dos demais ou se fui a fortaleza por tanto tempo que me tornei uma rocha, indecifrável ao escrutínio alheio, ainda que em meu interior a revolução borbulhe como nunca fez antes. Não sei se o que eu quero é atenção, ser deixado em paz, ou até mesmo mandar todos para aquele lugar, mas antes de me decidir o viking aparece e toma conta de mim, porque ele aguenta. Ele me diz para engolir o que quer que esteja entalado na minha garganta e assumir o papel de fortaleza, não somente por mim e pela minha reputação, mas também pelos outros, porque eu aguento. Me pergunto se isso é realmente necessário e o quanto ser assim me custa, porque quero romper a rocha, quero me libertar e curtir a vida como qualquer outro. Outra vez obedeço suas ordens, embora eu perca seu respeito toda vez que faço isso, afinal, vikings fazem o que bem entendem sem se sujeitar a ninguém. Eu já sei que posso ser uma fortaleza quando é necessário, seja pelos outros ou por mim, mas eu quero ser um viking melhor do que sou agora. Porque um viking não tem planos, regras ou valores, ele é um conquistador, um senhor de terras e riquezas. Eu, por outro lado, ainda sou um vassalo. Não mais. Dou por encerrada a servidão, renego a abnegação cristã, renego esse que foi meu último Natal. Não é a solução, mas é bom um começo, né?

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Votos da Patrulha da Noite

"Escutem as minhas palavras e testemunhem os meus votos. A noite chega, e agora começa minha vigília. Não terminará até a minha morte. Não tomarei esposa, não possuirei terras, não gerarei filhos. Não usarei coroas e não conquistarei glórias. Viverei e morrerei no meu posto. Sou a espada na escuridão. Sou o vigilante nas muralhas. Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem, o escudo que defende os reinos dos homens. Dou a minha vida e a minha honra à Patrulha da Noite, por esta noite e por todas as noites que estão para vir"

Guerra dos Tronos - George R. R. Martin

Silêncio

Toda vez que eu deito sozinho no meu quarto que mais parece uma prisão o vazio toma conta de mim, e quando isso acontece eu consigo ouvir o silêncio, que nada mais é que minha própria solidão. Então permaneço deitado, sentindo absolutamente nada. O vampiro se apodera de mim toda noite, mas ele não ataca durante a noite, e sim quando eu acordo no outro dia. Ele está desesperado por contato humano, independente da limitação desse contato, então ele suga a vida de quem enxerga pela frente, tentando preencher seu silêncio. Mas a pessoa absorvida não sai ferida, de fato ela sequer enfraquece; muito pelo contrário, ela sai fortalecida. Porque o vazio do vampiro é um espelho para elas, onde podem enxergar suas almas, o que causa atração e ao mesmo tempo distanciamento, afinal toda pessoa tanto se ama quanto se odeia. Mas por um breve momento o silêncio do vampiro é preenchido por vida, não pela sua, porém ainda é uma alternativa melhor do que o vazio. Então chega a noite e com ela o silêncio, e por um breve momento antes do vampiro tomar conta de mim mais uma vez, quando sinto aquela vida que não é minha abandonar meu corpo, fico apavorado ao descobrir que estou morto por dentro. Algo se partiu lá atrás, não lembro bem quando, algo que não tenho como recuperar. O vampiro fez essa vítima, ele matou alguém sem que eu sequer percebesse, então o silêncio toma conta de mim quando descubro que esse alguém sou eu. Toda noite ele faz de mim sua vítima, e durante o dia ele apenas se fortalece, dando minha vida em troca da vida dos outros, tudo premeditado para tirar outro pedaço de mim quando a noite chega; outro pedaço de sua única vítima. Agora estou tomado pelo vazio e completamente apavorado. Estou morto por dentro. Deus me ajude, estou morto por dentro.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Paradoxo

Antes já falei sobre as fiandeiras do destino da mitologia nórdica, em como elas determinam a vida dos homens, mas outro conceito presente na cultura viking é o de que os homens criam seu próprio destino. O que leva a um paradoxo, afinal, se tudo é determinado pelo destino, como podem os homens ter papel nisso? Convenhamos, no final das contas é tudo uma desculpa para fazer o que se bem entende, sem ligar para as consequências, porque usando a justificativa do destino os homens não precisam responder por nada. Ainda assim, vamos tentar entender a lógica disso, ok? Quem sabe simplesmente seja um modo de explicar aquelas pequenas coisinhas inexplicáveis da vida, as coincidências e ironias que não consigamos decifrar, embora nos tirem o sono durante o noite. Não gosto dessa explicação e vou dizer o motivo: é a explicação dos conformados, de quem tenta interpretar o destino, de quem se questiona diante da adversidade, buscando meios de ignorar ela. A possibilidade que mais me agrada é que o modo viking de ser consiste em desafiar o próprio destino, não deixando nenhuma situação ou pessoa moldar ele, sendo essa a única maneira de atingir esse destino. De que modo um guerreiro poderia conhecer o Valhalla não fosse o desejo de conquistar coisas extraodinárias? Ou seja, é possível lutar contra o destino, mas no fundo não tem como vencer dele, afinal, o único modo de atingir ele é lutando. E um viking não aceitaria viver de outro modo.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O chamado

Como se procura por alguma coisa já tendo encontrado ela? Me sinto assim muitas vezes. E o pior é que quanto mais procuro outra coisa mais forte se torna o que sinto, um rosto que me segue para todo lugar onde eu vou, acompanhado por um sentimento difícil de explicar. Na mitologia nórdica dizem que cada vida é um fio oriundo de Yggdrasill, a Árvore da Vida, depois esses fios são tecidos pelas Nornas, fiandeiras que controlam o destino dos homens. Muitas vezes dois fios se entrelaçam, seja por artimanha ou destino, e quando isso acontece o fio se torna um só, o caminho de duas pessoas se cruza, às vezes apenas por algum tempo, mas outras vezes para sempre. Agora o destino chega a mim como um chamado, pedindo para eu confiar nele, que tudo vai dar certo no final. A impressão é que esse chamado sempre esteve presente desde que os fios se aproximaram um do outro, ainda que na época eu não desse ouvidos a ele, talvez por ser cedo demais, e só o que eu sentia era uma sensação estranha de perda quando o destino começou a divergir do seu caminho. Mas e se tudo não passar de uma artimanha? Porque pode ser que os percalços sejam placas de aviso no ínicio de uma estrada perigosa por onde ninguém deveria passar. Mas como se livrar disso sem negar que o destino verdadeiro se realize? Porque pode ser que não seja uma artimanha e os percalços no caminho sejam apenas superficiais. Às vezes enxergo sinais que o chamado é verdadeiro, que não é algo exclusivo meu, e então um fogo acende dentro de mim, queimando todo obstáculo no caminho. Porque se for o caso é exatamente assim que eu agiria, afinal, conceitos místicos à parte, o chamado sou eu, minha chama interna, meu orgulho, o viking que não conhece obstáculos. Pode ser para pilhar uma cidade, roubar uma mulher, tanto faz. Por outro lado, o viking é apenas uma fantasia, porque o mundo não funciona mais assim e nem deveria. A verdade é que não tenho como saber se o chamado é unilateral como muitas vezes parece ser, mas também não descarto a possibilidade do chamado ser verdadeiro e da outra parte simplesmente não dar ouvidos a ele, como eu não o fiz por muito tempo. Mas não é do feitio dos homens interpretar o destino. Tudo o que eu posso fazer é confiar em mim, naquilo que sinto, naquilo que vejo, e que no final só os deuses sabem a resposta.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Nos sonhos...



A candy-colored clown they call the sandman
(Um palhaço colorido que chamam de Morfeu)
Tiptoes to my room every night
(Toda noite entra devagarinho no meu quarto)
Just to sprinkle star dust and to whisper
(Só para espalhar sua areia e sussurrar)
“Go to sleep, everything is all right”
("Vá dormir, está tudo bem")

I close my eyes then I drift away
(Eu fecho os olhos e me deixo levar)
Into the magic night, I softly say
(Na noite mágica, eu digo baixinho)
A silent prayer like dreamers do
(Uma prece silenciosa como os sonhadores fazem)
Then I fall asleep to dream my dreams of you
(Então eu durmo para sonhar meus sonhos com você)

In dreams I walk with you
(Nos sonhos eu ando com você)
In dreams I talk to you
(Nos sonhos eu falo com você)
In dreams you’re mine all the time
(Nos sonhos você é minha o tempo todo)
We’re together in dreams, in dreams
(Estamos juntos nos sonhos, nos sonhos)

But just before the dawn
(Mas logo antes de amanhecer)
I awake and find you gone
(Eu acordo e vejo que se foi)
I can’t help it, I can’t help it if I cry
(Não posso deixar, não posso deixar de chorar)
I remember that you said goodbye
(Eu me lembro que você disse adeus)

It's too bad that all these things
(É uma pena que essas coisas)
Can only happen in my dreams
(Só possam acontecer nos meus sonhos)
Only in dreams
(Só nos meus sonhos)
In beautiful dreams
(Lindos sonhos)

domingo, 28 de novembro de 2010

Fantasias

O que fazer quando a melhor parte da sua vida é uma fantasia? E não é que seja uma fantasia distante, não mesmo, ela está seguidamente na minha frente, dentro de mim e em outra infinidade de lugares. Mas que barreira é essa que me impede de transformar essa fantasia em realidade? Ela pode não depender somente de mim, existem também barreiras fisícas, psicológicas, sentimentais, mas ela não é nada impossível, pelo menos penso que não. Talvez ela não se concretize com a perfeição que imaginei, mas não sou arrogante de não aceitar uma versão adaptada dessa fantasia, como um remake ou adaptação de um livro que acaba superando a original se a gente der a chance, pelo menos penso que não. Por outro lado, sou tão cego a ponto de imaginar coisas? Às vezes a fantasia, a perfeita, não a adaptada, parece tão próxima que chego a me sentir otimista, mesmo que não tenha motivo nenhum para me sentir assim. Ou será que tenho? Porque acho difícil acreditar que tirei algo do nada. Bom, ao menos tenho o direito de sonhar, né?

sábado, 27 de novembro de 2010

Três resoluções

1 - Não sentir pena de mim mesmo

Era inevitável que em algum momento da minha vida eu descobrisse esse sentimento que sempre repudiei, ainda mais depois do que aconteceu. Porém, como desculpa para mim mesmo demorei para identificar que era isso o que eu sentia, afinal, realmente nunca tinha sentido antes. Mas agora que senti renego ele com todas as minhas forças.

2 - Cuidar de mim

Por muito tempo vivi como dois, portanto não me cuidei como deveria. Agora que estou sozinho passei a cuidar mais de mim mesmo, mesmo que muitas vezes o esforço não faça jus ao resultado. Mas ainda tenho um longo caminho para ficar satisfeito comigo mesmo.

3 - Viver de acordo com o que eu acredito

Sempre admirei o mito em volta dos vikings, o modo como viam a vida e se comportavam perante ela. Contudo, nunca realmente vivi como um, sempre tímido demais, reprimido demais. Na verdade eu estava mais para um monge, negligenciando coisas, inclusive meus sentimentos, tudo em nome do estilo de vida que escolhi, tudo pelo bem da missão. Eu era um monge guerreiro, mas ainda assim um monge. Agora que aquela guerra terminou e outra se inicia posso ser o viking que sempre quis ser, que sempre fui segundo contam da minha infância. A partir de agora vou ser pragmático, beirando o niilismo. Vou ver, querer e ir atrás. Caso não consiga o que eu quero pelo menos vou saber que lutei até o fim e o Valhalla me aguarda. É o modo viking.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Perdido na floresta

Às vezes desce uma luz sobre mim e eu sinto como se entendesse tudo que tivesse para ser entendido, então tudo é belo, minha vida, minhas amizades, meus amores. Mas de repente tudo aquilo some e surge o medo, a desconfiança, o rancor. Eu ouço uma risada no fundo da minha mente, uma voz demente dizendo "Você não está livre ainda, garotinho assustado. Você nunca vai estar livre. Você é meu". Quem é esse estranho que mora na minha mente? Desconfio que seja o Lobo Mau, aquele que subi no palco para enfrentar quando era tão pequeno que hoje em dia sequer lembro da cena, sabendo dela por terceiros. De certa forma, foi a experiência definitiva da minha vida, aquela que tento fazer jus até hoje. Me pergunto porque o garotinho assustado não se juntou ao choro dos demais. Por que ele se sentiu obrigado a subir no palco e enfrentar o Lobo Mau? Estaria ele com medo como todos os outros? Imagino que sim. Então por que ele subiu no palco? Às vezes me pego pensando se seria por que no seu subconsciente o garotinho sabia o que teria que enfrentar mais para frente, como um soldado que não hesita entrar na linha de fogo por saber que está adiando o inevitável, e nesse caso prefere lutar nos seus próprios termos. Porque o garotinho não consegue se resignar ou fingir que está tudo bem como os outros, não por ser melhor do que eles, mas porque se não fizer isso o Lobo Mau o pegará. O que me faz pensar que talvez esse Lobo Mau também seja o garotinho, o que faria dele também o Lenhador. É a velha história do bem contra o mal, luz contra a escuridão, tudo dentro de uma única pessoa. Se por um lado o Lenhador luta para defender a inocência, representada pela Chapéuzinho Vermelho, o Lobo Mau quer destruí-la. Sua voz chega em mim agora como um rosnado, querendo destruir tudo o que tenho, minhas amizades, meu amor, minha inocência. Ele vai atrás do que eu mais valorizo, aquilo que mais machuca. Então surge o Lenhador e eu quero fugir, o garotinho cansou de lutar, ele quer paz. Ele quer desistir, alguém que cuide dele, afinal, ele é apenas um garotinho e naquela luta não há um vencedor, nunca houve. Até que surge Chapéuzinho Vermelho, toda chamativa com seu gorro rubro, um alvo ambulante para o Lobo Mau, que avança sobre ela e deixa o Lenhador lutando sozinho. Nisso o garotinho olha para os lados e não enxerga ninguém para ajudar, todos fugiram ou estão paralisados de medo, achando que estão seguros em seus casebes. Outra vez ele corre para o campo de batalha, sem saber o porquê de ter tomado essa decisão, e dessa vez o Lobo Mau corta sua pele, porque agora a luta se tornou real, o garotinho tomou consciência disso. Mas o garotinho é pequeno demais para lutar e ele grita pelo Lenhador enquanto as garras do Lobo Mau dilaceram sua pele. O garotinho protege Chapéuzinho Vermelho usando seu corpo, recebendo cada golpe que era destinado a ela, pois apesar de ser corajosa a garotinha é frágil demais para andar sozinha na floresta, algo que ninguém deveria fazer. É por ela que o garotinho voltou atrás, portanto não pode abrir ela de mão. O Lobo Mau se aproxima salivando para devorar as duas crianças aos seus pés, mas um golpe de machado corta o ar, tirando também um pedaço do monstro. Ele rosna e salta sobre o Lenhador, retomando a velha disputa. Chapéuzinho Vermelho aproveita a distração do Lobo Mau e corre de volta para a aldeia, lançando apenas um olhar ao garotinho ferido antes de atravessar o portão, como se o convidasse a vir junto. Era tudo que ele gostaria, mas se o fizesse, quem ajudaria o Lenhador a vencer aquela luta? Porque a luta era dele e ninguém lutaria em seu lugar. Mas a batalha não se desenrola mais no palco, mas na floresta, e ela é muito, muito real. Sem saber o que fazer, o garotinho senta no chão e observa a luta, se perguntando quem sairá mais ferido dessa vez, quem virá até ele caso enfim saia um vencedor daquela luta. Ou aquela batalha nunca teria um vencedor, sendo o garotinho o único possível perdedor, quando Chapéuzinho Vermelho se colocar mais uma vez no meio da disputa? Mesmo depois de todos esses anos eu ainda não sei a resposta, porque para isso eu teria que entender o que fez o garotinho subir no palco, quando só o que eu possa fazer é levantar hipóteses. Afinal, quem é o garotinho? Não só ele, mas o Lenhador e o Lobo Mau, quem são eles? Teria Chapéuzinho Vermelho a resposta? Será ela que o garotinho deveria conhecer? Chapéuzinho Vermelho quer conhecer ele? Mas então a luta daquele dia termina, outra trégua foi aceita por ambas as partes. O Lenhador segue seu caminho para a aldeia, olhando o garotinho com pena quando passa por ele. Por sua vez, o Lobo Mau tem um sorriso no rosto lupino quando toma o caminho de sua toca, mas faz questão de parar diante do garotinho assustado. Ele diz sua frase: "Você não está livre ainda, garotinho assustado. Você nunca vai estar livre. Você é meu". Mas ele acrescenta algo: "Você sou eu". Então desaparece entre as árvores. Mais uma vez o garotinho está sozinho na floresta, perdido, sem saber o caminho de casa. A aldeia é inalcançável, com seus altos muros de madeira, e a toca de um lobo não é lugar para um garotinho. Mesmo assim ele fica em pé e tenta achar seu caminho, se embrenhando cada vez mais na floresta, mas não irá demorar para o Lobo Mau seguir seu rastro, com o Lenhador em seu encalço. Ou talvez ele encontre Chapéuzinho Vermelho na floresta como fez tantas outras vezes. Começa tudo de novo.

O Lobo Mau pisa no palco outra vez e não há nenhum Lenhador. O garotinho sobe no palco. E rolam as cortinas.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Servo e o Guerreiro Pt. 1

A única coisa viva no salão grande e mal iluminado era o guerreiro sentado no trono. Ele estava praticamente atirado sobre o trono, de pernas cruzadas e com uma das mãos pendendo para fora do apoio de braço ricamente trabalhado em madeira, enquanto a outra suportava o enorme peso de sua cabeça, toda feita de cabelos e barba igualmente desgrenhados. A mão boa segurava um grande chifre cheio de cerveja e a cada respiração do homem o conteúdo abundante do copo improvisado molhava mais o piso de terra. Chovia lá fora e o teto de palha pouco impedia que os pingos entrassem, se misturando com a cerveja que era absorvida pela areia. O guerreiro olhava ao redor para o que sobrara de sua vida arruinada, pensando nos amigos e irmãos que perdeu na grande guerra, mas principalmente no rosto que tantas vezes lhe deu forças para continuar lutando.
De repente um grande trovão despertou o guerreiro de seu estupor e a lembrança do choque da parede de escudos causou um estremecimento em seu corpo. O chifre caiu no chão e se partiu em dois.
O som do chifre se partindo foi o suficiente para atrair a atenção do principal servo da casa, que esperava as ordens de seu senhor do lado de fora do salão. Ralla era seu nome e ele entrou no salão escuro procurando avidamente por seu mestre.
- Senhor? – perguntou ele em tom hesitante, sem conseguir enxergar direito.
O guerreiro não respondeu imediatamente. Quando finalmente se manifestou foi na forma de um grunhido rude, como um urso faria ao ser incomodado. Então o enorme homem se levantou com algum esforço, apoiando todo seu peso na perna esquerda, a única que ainda prestava. Os olhos do servo se estreitaram quando ele achou ter visto algo parecido com um ser humano na escuridão.
- Está tudo bem, Ralla – respondeu o guerreiro com o tom de voz mais delicado que conseguiu pronunciar, mas que ainda soava como o resmungo de um animal ferido. Ele se aproximou lentamente do servo, arrastando a perna direita, e simulou o que deveria ser um sorriso quando foi iluminado pela luz que entrava pelo vão da porta. – Mas não disse que não queria ser incomodado?
O servo se assustou diante da visão horrenda daquele homem destroçado e deu alguns passos para trás, batendo com as costas em uma das muitas vigas que davam suporte ao teto. Ele já tinha visto seu senhor algumas vezes desde que ele voltara, mas não deixava de se surpreender com o pouco que havia sobrado do rapaz brincalhão e cheio de vida que um dia conheceu.
- Não precisa se assustar – disse o guerreiro, virando as costas para o velho amigo que agora era nada mais do que um criado. Ele fingiu estar avaliando o salão, mas mantinha todo sua atenção no servo – Já não me teve como irmão certa vez, meu caro Ralla?
Depois de dar tempo suficiente para o homem recuperar sua postura, o guerreiro se virou outra vez para ele, ainda exibindo aquele sorriso medonho no rosto. E embora ainda houvesse uma certa ternura e diversão naquele olhar, os tempos eram simplesmente difíceis demais para alguém se dar ao trabalho de notar.
Ralla se manteve quieto, sem arriscar palpites quanto ao humor de seu mestre. Ele apenas concordou com a cabeça.
O guerreiro suspirou antes de continuar.
- Então por que olha para mim como se eu fosse algo desumano?
Ele fez aquela pergunta com uma naturalidade que deixou Ralla inquieto. Mas a verdade é que o velho guerreiro diante dele realmente parecia mais animal do que homem, muito provavelmente porque fazia anos que não se olhava em um espelho, e o sorriso tornava tudo cem vezes pior. Ainda assim Ralla virou a cabeça de lado ao ouvir aquela pergunta e estava visivelmente envergonhado.
- Perdão, senhor – disse o criado, encarando o guerreiro nos olhos mais uma vez. – São os homens, senhor. Eles estão nervosos. O inimigo se aproxima cada vez mais. – ele hesitou um pouco antes de continuar. – E posso falar francamente?
O guerreiro fez um sinal distraído com a mão para ele continuar e se debruçou sobre a viga mais próxima, testando sua firmeza.
Ralla engoliu em seco antes de prosseguir.
- Eles têm medo do senhor, senhor.
Isso fez o guerreiro soltar a trave e olhar com incredulidade para Ralla.
- Medo de mim! – exclamou ele, afetando a voz com toda a inocência que pôde fingir, e o rosto escondido pelo emaranhado de cabelos contribuía e muito para acobertar a simplicidade do que realmente sentia, que era nada mais do que puro divertimento. – Mas por que motivo? Por acaso não voltei tão bonito quanto da última vez tirando um ou outro arranhão insignificante? E se não for o caso, certamente voltei mais rico!
O final da frase já foi um grito para todos os criados ouvirem, e o guerreiro correu para a porta a fim de ser ainda mais enfático, erguendo a voz o mais alto possível.
- Então voltem a trabalhar, seus preguiçosos! E não quero saber de cara feia além da minha!
A gritaria deu resultado e os servos e soldados que ainda vagavam pela propriedade apressaram o passo, se juntando aos outros que buscavam abrigo na fortaleza natural das montanhas. Ralla assentiu com a cabeça e também começou a se afastar, mas quase caiu sobre as próprias pernas quando uma mão mutilada pousou pesada em seu ombro, e tamanha era a força do engate que ele não tinha certeza se conseguiria escapar caso tivesse essa intenção.
- Você fica – disse o guerreiro, sério. – Temos um assunto a tratar, eu e você.
E então retornou vagarosamente para a escuridão do salão.
- Meu senhor?
Ralla hesitou um pouco. Como não tinha sido convidado a entrar não queria testar mais uma vez a paciência de seu senhor, aquele ser tão estranho que voltou no lugar do homem que um dia considerou como um irmão. Por vezes o servo se perguntava se não era um impostor. Muitas vezes, após uma longa guerra, um guerreiro tomava o lugar de outro soldado falecido mais bem sucedido e retornava às terras do morto para se aproveitar de sua fortuna, pilhando o local e depois seguindo seu caminho. E por Odin, como fora longa essa guerra!
- Eu sei o que você está pensando – interrompeu o guerreiro com sua voz rouca vindo de algum lugar na escuridão. – E admito que até faz sentido. – ele fez outra pausa antes de continuar, mordendo e engolindo alguma coisa nesse intervalo – Mas pense comigo, Ralla: que tipo de idiota se daria ao trabalho de roubar uma pocilga dessas?
O guerreiro riu de sua própria afirmação, embora não tenha achado graça nenhuma. Então continuou cheio de veneno na voz:
- Sinceramente, a primeira coisa que eu pensei quando vi o estado desse lugar foi virar as costas e pegar o primeiro navio de volta ao continente. Como as coisas foram acabar assim, Ralla? Por acaso todo o ouro e toda a prata que mandei não foram o suficiente para fazer desse lugar mais do que um chiqueiro? Ou o velho investiu tudo em prostitutas e bebida?
Ralla não conseguiu manter a frieza diante dessas calúnias e deu um passo para frente, quase adentrando na escuridão junto com o velho guerreiro.
- O senhor não sabe como foi difícil para o seu pai durante a guerra, senhor – começou ele, fazendo toda a força que tinha para medir as palavras. Afinal, não podia faltar com respeito para com seu senhor, independente de concordar ou não com suas palavras. Pelo menos ele fora ensinado dessa maneira. – O rei quase dobrou os impostos para financiar a campanha no exterior, e por mais que tenham sido os tributos enviados pelo senhor e seus irmãos falecidos que botaram comida em nossas mesas e nos deram abrigo, não vou tolerar que o senhor fale assim de seu pai. Porque eu sei que o senhor não pode estar falando sério. Não se de fato o senhor for o mesmo homem que conheci tantos anos atrás.
Silêncio. A todo instante o servo esperava ver um machado arremessado em sua direção ou descendo contra seu crânio, mas nada aconteceu. Ele só podia ouvir a respiração pesada de seu senhor.
- Eu preciso de duas coisas, Ralla – disse o guerreiro de repente.
Ele se aproximou um pouco mais da luz e deixou a claridade iluminar quase todo seu corpo com a exceção do rosto.
- É só pedir, meu senhor.
- Primeiro, gostaria de um espelho, se é que vocês têm qualquer noção de civilidade nesse lugar medonho.
- Um espelho, senhor? – indagou Ralla, confuso com esse desejo de seu senhor. Era certamente a última coisa que ele imaginava ouvir.
- Sim. Um espelho.
O servo assentiu com a cabeça e correu para a casa principal. Lá ele pegou o pequeno espelho pendurado na parede do lado oposto da porta, aproveitando para apanhar os atiçadores de chama da forjaria no caminho, depois correu de volta ao grande salão com o passo apertado. Ralla estacou do lado de fora à espera de ordens.
Mas a primeira coisa que recebeu foi o resto de um talo de maça que voou através da porta. Então o guerreiro deu uma tossida monstruosa de algum lugar do salão e na sequência escarrou, adicionando o próprio muco a já bem regada areia do piso.
- Coloque o espelho sobre a mesa – ordenou calmamente.
Sem hesitar, Ralla entrou tateando na escuridão do salão, se guiando pelas vigas.
- Pode acender o fogo se achar melhor.
- Obrigado, senhor.
O servo ficou grato com a boa vontade de seu senhor e acendeu o fogo com entusiasmo. E quando as chamas já estavam suficientemente altas Ralla se virou para admirar o velho salão iluminado, algo que não acontecia desde a morte do antigo senhor, o homem que tinha como pai. Porém, essa boa lembrança desapareceu imediatamente quando seu senhor atual surgiu de trás de uma viga como uma aparição maligna, vestindo nada mais do que um calção, e a visão daquela coisa repleta de cicatrizes e deformidades fez Ralla perder o fôlego.
Seu mestre era praticamente Loki encarnado.
No primeiro momento o guerreiro não percebeu o olhar do servo, mas de repente estacou como se tivesse tomado conhecimento que estava sendo avaliado, então se empertigou todo para receber seu julgamento. O momento durou apenas alguns instantes, o suficiente para Ralla mudar um pouco a visão que tinha daquele homem, embora ainda não soubesse definir muito bem o que estava sentido. Agora o guerreiro mancava ligeiramente ao invés de arrastar o pé com dificuldade e foi dessa forma, dando passos precisos e orgulhosos, que ele alcançou a mesa e pegou o espelho com a mão boa.
Primeiro deu uma boa olhada no rosto, onde tateou com a ponta dos dedos a cicatriz que começava na testa, atravessava o olho cego e terminava quase na ponta do queixo. Quando viu o suficiente da ruína que abatera seu rosto, tentou enxergar as costas e outras partes do corpo que não conseguia ver seguidamente. Ralla percebeu a dificuldade de seu senhor e se adiantou.
- Deixe eu lhe ajudar, senhor.
O guerreiro olhou atônito para o criado e lhe ofereceu o espelho depois de uma certa hesitação. Ralla também hesitou por alguns instantes, mas raciocinou tão rápido quanto seu senhor e pegou o espelho, se posicionando atrás dele para que ele pudesse enxergar as costas. Os dois ficaram assim por alguns minutos e se surpreendiam e ficavam chocados a cada cicatriz e deformidade descoberta. Não apenas nas costas, mas nos braços, pernas e todo lugar que se possa imaginar.
No final o guerreiro pegou o espelho para si outra vez e deu uma última olhada no rosto. Ele o fez em silêncio e com uma expressão indiferente no primeiro momento, mas então fez algo que Ralla jamais imaginaria e muito menos compreendia, pelo menos não naquela hora: o velho guerreiro sorriu.
- Todas essas pancadas, arranhões, cortes e perfurações – começou ele ainda com aquele estranho sorriso no rosto. –, e eu ainda sou mais bonito do que você, Ralla.
E com isso ele devolveu o espelho à mesa e se virou sorridente para o homem que tinha como irmão. Ralla foi pego de surpresa sorrindo de volta.
- Isso significa que você não tem medo mais medo de mim? – perguntou o guerreiro, achando graça.
- Eu nunca tive, senhor. É que o senhor sempre foi feio, só fiquei mal acostumado durante sua ausência.
O guerreiro riu alto disso.
- Você perdeu o juízo, Ralla? Era sempre eu que precisava lhe arranjar mulheres. E por muitas vezes tive de pagar as pobres moças.
Dessa vez os dois que riram alto.
E foi aí que Ralla finalmente se deu conta que estava diante de um homem extraordinário. O simples esforço de permanecer em pé naquelas condições já deveria ser imenso, quanto mais lutar até a última batalha como ele fizera, quando muitos outros já haviam retornado sem terem sofrido um único arranhão. E a força de caráter para manter o bom humor, o orgulho e a sagacidade era simplesmente admirável, ainda mais depois de perder todos que amava e retornar para uma terra arrasada. O servo sentiu os olhos arderem e se afastou fungando quando as primeiras lágrimas brotaram.
O guerreiro não deu nenhum sinal de ter visto o descontrole de Ralla e se viu nada disse. Ele apenas retomou seus afazeres e vestiu a túnica e as botas.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Lobisomem Nick

Vou tentar voltar a atualizar o blog, que vinha parado há dois anos, mas agora o foco será apenas nos contos e similares. E para começar fiquem com o background do primeiro lobisomem que criei para o jogo Lobisomem: O Apocalipse...

Eu não sou um sujeito perfeito. Longe disso. E aqui vai o porquê:

Meu nome é Nicolas Volkmann e nasci em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, filho de papai e mamãe, mas nunca me senti realmente em casa aqui e recentemente descobri o motivo disso. Mas não vamos nos apressar, certo? Por enquanto, fiquemos no clichê. Meus pais.

Papai Jorge é um advogado podre de rico com ambições políticas (se é que ainda falta alguma depois de tanto que eu aprontei) e mamãe Anna é uma médica de renome (se é que ainda tem algum pelo mesmo motivo). Como não poderia deixar de ser, os dois me odeiam, claro. Não que eu os culpe, mas por algum motivo nunca reconheci os dois como família e meus recorrentes pesadelos e ataques de fúria na infância destruíram qualquer relação que pudéssemos ter. O que veio de lá para cá foi apenas a pá de cal. Minha única relação familiar de fato se deu com o tio Igor.

O velho morava no apartamento da frente no nosso condomínio de luxo e sempre me defendia quando eu aprontava. E mesmo sabendo que a preocupação e a raiva dos meus pais eram justas considerando que eles não podiam entender minha natureza, foi difícil deixar de simpatizar com o velho. Quando nos visitava naquela época ficava sempre me vigiando pelo canto do olho e desviava o olhar quando eu olhava de volta, como se eu fosse um ídolo do qual ele não fosse digno de admirar. Por algum motivo ele gostava de me chamar de Nikolai ou Niko, alegando que era meu nome verdadeiro, mas só revelaria o porquê muitos anos depois.

Todo fim de semana visitávamos sua fazenda no interior e lá eu me sentia tão mais tranquilo que depois de certo tempo meus pais simplesmente me despachavam sob os cuidados do velho e voltavam para o aspecto de suas vidas que fazia sentido, loucos para se verem livres de mim. Eu tinha 11 anos quando passei o primeiro fim de semana com o tio Igor e não demorou muito tempo até o velho me tratar como gente ao invés de um objeto que o Indiana Jones adoraria afanar.

Logo nos tornamos muito unidos e nosso passatempo predileto era ir para o meio do mato e brincar de pique-esconde ou encontrar objetos escondidos pelo outro. Na época eu era muito pequeno para entender, mas agora vejo que ele estava me testando. Treinando-me, na verdade. Não que eu me ressinta disso, Gaia sabe que não, até porque eu sempre saía vencedor de nossos pequenos duelos, e no começo cheguei a pensar que ele facilitava para mim, mas não era o caso porque no final de tudo o velho exibia uma expressão de derrota genuína demais para ser fingida. E ainda assim ele olhava para mim cheio de um orgulho que era de partir o coração.

Hoje em dia, olhando para trás, acho que o velho via em mim o potencial para ser tudo que ele jamais poderia ser. Mas só o que eu queria era transformar aquele orgulho em decepção, como eventualmente faria, porque não queria toda aquela responsabilidade, e quando cheguei à adolescência não tinha mais nenhum interesse nas tolices do tio Igor. O próprio colaborou com o nosso distanciamento quando afundou na bebida e perdeu sua fortuna (um sujeito bem estranho se mudou para o apartamento da frente da casa dos meus pais nessa época, e agora sei que ele me vigiava, substituindo tio Igor), virando a ovelha negra da família por algum tempo, até que eu acabei herdando esse título quando topei com uma gata chamada Heroína, que quase me matou.

A partir de agora a minha história avança mais rápido. Não porque se passa em um intervalo pequeno de tempo, mas porque eu estava tão doidão na época que mal notava coisas pequenas que aconteciam ao meu redor, como a decadência da raça humana e a passagem do tempo. Mas se existe algo que posso dizer em minha defesa é que os pesadelos que marcaram minha infância só aumentariam de intensidade com o tempo, a ponto de eu sofrer de insônia e estranhas visões diurnas, que assim como os sonhos tinham uma temática selvagem, variando de perseguições na floresta a sangrentas lutas animalescas. Até aí eu tive o apoio dos meus pais, mas isso só durou até eu começar a vender objetos da casa para poder comprar analgésicos mais fortes ou drogas, e nem preciso dizer que fui expulso de casa quando recorri à heroína...

O que na verdade não fez a coisa melhorar, só intensificou a experiência. Os sonhos adquiriram uma qualidade interativa e eu me sentia mais perto de descobrir do que tudo isso se tratava, sendo que ao mesmo tempo sabia estar exposto e correndo perigo. Mas o vício falou mais alto e as doses se tornaram tão frequentes a ponto das idéias mais idiotas parecerem sacadas geniais, entre as quais se destacam fazer amizade com um negão traficante com o dobro do meu tamanho, passar a responder apenas pelo apelido maneiro “Nick”, comprar uma motoca acabada e um apartamentinho fuleiro no Centro (outro cara esquisito passou a cuidar de mim quando me mudei, dessa vez morando no apartamento ao lado), e por fim virar sócio do mesmo negão traficante e abrir um bar com o discreto nome “O Uivo” na Lima e Silva. Mas a mudança que trouxe mais consequências foi quando me juntei ao Greenpeace.

Eu tinha 17 anos na época e vivia drogado com exceção das noites em que trabalhava no bar. Em uma dessas ocasiões notei um grupo discutindo política, mas o que mais chamou minha atenção foi uma francesa gostosinha mais velha do que eu chamada Julie, que não tirava os olhos de mim. Acabei me juntando a eles no final do expediente e descobri que estavam na cidade para protestar contra a abertura de uma subsidiária de uma empresa (“maligna” segundo suas palavras) chamada Pentex, nome que não significava nada para mim até aquele momento. Toda aquela conversa de poluição do mar, desmatamento e lixo tóxico mexeu comigo e na época eu não sabia por que, mas Julie era toda a motivação que eu precisava para viajar mundo afora, e foi o que fizemos quando nosso protesto não deu em nada.

Deixei o bar sob os cuidados do meu pequeno sócio e peguei um avião para o exterior junto com Julie e seus colegas. Viajamos a muitos lugares, protestando pacificamente contra tudo o que se pode imaginar, mas isso tudo passou por mim como um borrão. Passávamos a maior do tempo no barco de Ahmed, um argeliano barbudo que coordenava nossas operações – e supostamente pegava a Julie antes de mim –, mas do que eu mais me lembro são das noites que passei com ela pelas costas de seu “namorado” (nessas ocasiões ela dizia que eu era “irresistivelmente estragado”). Outra coisa que chamava a minha atenção era que eu podia jurar que o meu vizinho viajava conosco, ainda que ninguém mais o enxergasse...

Não demorou muito até eu adquirir uma posição de prestígio no grupo, e movido basicamente por drogas convenci a todos que deveríamos ser mais agressivos, então passamos a empunhar armas. Ahmed não concordou e foi embora. Julie ficou comigo, ainda que estivesse indecisa. A verdade é que quanto mais eu afundava na heroína mais me sentia perto de uma resposta para os meus sonhos, chegando ao ponto de acreditar que tinha conseguido captar uma mensagem sobre o fim do mundo durante um pico, e daí surgiu a vontade incontrolável de ser mais firme contra as ameaças ao meio-ambiente. Sei que parece loucura, mas eu já estava no ponto de confundir sonho com realidade, enxergando monstros no lugar de marinheiros de navios baleeiros e empregados de companhias petrolíferas poluidoras. E o tempo mostrou que eu não estava muito longe da verdade.

Minha primeira mudança ocorreu em algum país da América Central do qual eu nunca tinha ouvido falar e agora nem lembro mais do nome. Estávamos acampados do lado de fora de uma fábrica de produtos químicos isolada da humanidade, e a princípio ela não parecia fazer muito mal a ninguém, mas eu sentia algo de ruim nela. Na verdade, eu tinha desenvolvido uma habilidade quase sobrenatural para descobrir esse tipo de coisa, uma sensação que era intensificada pela heroína. A aura que emanava da fábrica era tão opressiva que eu me fechei dentro da minha barraca e afundei na heroína como nunca tinha afundado antes. Outra sensação que vinha cada vez mais à tona era a de perigo iminente. E como nós precisávamos nos manter a um passo à frente das autoridades naquela época, ninguém estava de olho em mim no momento, me tornando presa fácil para uma armadilha da Wyrm.

Mas foi quando eu estava mais destruído física e espiritualmente por causa da heroína que pude entender a mensagem dos sonhos com mais clareza, a ponto de enxergar os vultos de uma batalha épica envolvendo estranhas criaturas, da qual um enorme lobo prateado saíra vencedor. De repente o cenário mudou e tudo ficou mais escuro, parecendo perder o foco. Ainda era o mesmo lugar, mas uma espécie de película me separava do lobo, que agora se erguia em pé com um semblante fantasmagórico. Ele olhou para mim e disse em outra língua que sabia um segredo que poderia deter o Apocalipse se alguém fosse até ele no mundo espiritual. Então despertei com o barulho do tiroteio. A Wyrm viera atrás de mim.

Ainda não tinha voltado completamente a mim quando pus os pés para fora e por isso saí tropeçando em meio a um cenário de guerra. Seguranças portando metralhadoras tinham vindo de jipe das cercanias da fábrica e abriam fogo contra meus colegas, que estavam inferiorizados com simples revólveres, e logo dois foram alvejados. Naquela hora eu estava fora de mim, envolvido em minha própria batalha apocalíptica, por isso ignorei os riscos e puxei meu revólver. Não demorei a ser abatido, mas não antes de acertar um tiro perfeito na cabeça de um dos seguranças, causando uma reação que me assombra até hoje: o guarda que deveria estar morto se transformou em um monstro e partiu para cima de mim. Então ficou tudo vermelho e eu apaguei.

As semanas seguintes foram de muito descanso misturado com lapsos de consciência onde eu me via em um ambiente familiar. Sempre que dormia uma voz conhecida tentava me trazer de volta à vida apelando para o apelido Nikolai, até que um dia finalmente acordei e dei de cara com o rosto lacrimejante do tio Igor, reconhecendo o lugar como sua velha fazenda. Não conversamos muito no começo, afinal, eu estava na pior fase da abstinência e só não escapei porque ele me dopava com uma merda natural de aparência horrível e gosto ainda pior, mas com o tempo ele me permitiu sair da cama na qual me mantinha amarrado e fazer passeios no quintal da casa. Até que um dia recuperei integralmente minha liberdade de volta e o velho começou a me contar tudo.

Antes de tudo ele me explicou o que tinha acontecido no confronto com os seguranças-monstro, dizendo que eles eram algo chamado Dançarinos da Espiral Negra, lobisomens que tinham se corrompido e me perseguiam há muito tempo por eu pertencer a uma tribo dessas coisas chamada Presas de Prata, a mais nobre das treze tribos restantes e que tem cada vez menos membros. Segundo ele, os tais bandidões se aproveitaram do meu vício para me atrair até eles, mexendo na minha cabeça para tirarem os protetores da tribo do meu rastro. O velho disse que tomou conta de mim até a bebida o arruinar, mas depois outros assumiram seu lugar, o que explica de uma vez por todas meus vizinhos esquisitos e a sensação de ser vigiado. Sobre o confronto em si, ele explicou que eu entrei no que chamam de frenesi e matei um dos monstros antes de outro lobisomem da minha tribo aparecer para me salvar, e só pude ser contido depois que fui trazido até aqui. Julie e mais alguns companheiros meus conseguiram escapar. Decidi encerrar o dia depois que o velho me contou sobre a Maldição e a eterna batalha entre os Garou e a Wyrm.

Demorou muitas semanas até o velho contar tudo o que sabia sobre os lobisomens e a minha tribo, explicando que não era como eu, mas um parente que por algum motivo não sofreu a primeira mudança, ainda que fosse imune ao Delírio por causa disso. Outra novidade para mim é que eu descendia de Garous russos, o que explicava o meu sobrenome e o apelido Nikolai (“Volk” significava “lobo” em russo e o Volkmann surgiu da miscigenação com outros povos da Europa). Meu tio só não sabia dizer por que a Wyrm se interessava tanto por mim, que muitos Garous morreram para me proteger, então eu aproveitei a deixa para falar sobre a profecia do meu sonho. Por Gaia, como esse velho demorou a responder!

Ainda se passou um mês até eu me recuperar de todos os ferimentos e estar suficientemente seguro para retomar a vida em Porto Alegre, e só no dia marcado para a minha volta recebi uma resposta: o velho tinha chegado à conclusão que eu deveria ir até o Caern no Parque da Redenção atrás de respostas, dizendo que os anciões saberiam o que fazer, afinal, o sonho poderia ser mais do que uma mera armação da Wyrm. De fato, poderia muito bem ser a verdadeira razão do interesse dos Dançarinos em mim. Nesse meio tempo ele iria viajar a Europa e aos Estados Unidos com o mesmo objetivo. Por fim ele acabou me levando de carro e me largou no meu apartamentinho, mas não antes de deixar seu diário comigo para ajudar a tirar qualquer dúvida, e é nele que eu escrevo agora caso me encontrem morto em um beco e queiram saber o que aconteceu comigo. Pena que nenhum civil jamais o compreenderá...

Assim eu voltei para casa com uma nova esperança para mim e todo o mundo.