segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Nos sonhos...



A candy-colored clown they call the sandman
(Um palhaço colorido que chamam de Morfeu)
Tiptoes to my room every night
(Toda noite entra devagarinho no meu quarto)
Just to sprinkle star dust and to whisper
(Só para espalhar sua areia e sussurrar)
“Go to sleep, everything is all right”
("Vá dormir, está tudo bem")

I close my eyes then I drift away
(Eu fecho os olhos e me deixo levar)
Into the magic night, I softly say
(Na noite mágica, eu digo baixinho)
A silent prayer like dreamers do
(Uma prece silenciosa como os sonhadores fazem)
Then I fall asleep to dream my dreams of you
(Então eu durmo para sonhar meus sonhos com você)

In dreams I walk with you
(Nos sonhos eu ando com você)
In dreams I talk to you
(Nos sonhos eu falo com você)
In dreams you’re mine all the time
(Nos sonhos você é minha o tempo todo)
We’re together in dreams, in dreams
(Estamos juntos nos sonhos, nos sonhos)

But just before the dawn
(Mas logo antes de amanhecer)
I awake and find you gone
(Eu acordo e vejo que se foi)
I can’t help it, I can’t help it if I cry
(Não posso deixar, não posso deixar de chorar)
I remember that you said goodbye
(Eu me lembro que você disse adeus)

It's too bad that all these things
(É uma pena que essas coisas)
Can only happen in my dreams
(Só possam acontecer nos meus sonhos)
Only in dreams
(Só nos meus sonhos)
In beautiful dreams
(Lindos sonhos)

domingo, 28 de novembro de 2010

Fantasias

O que fazer quando a melhor parte da sua vida é uma fantasia? E não é que seja uma fantasia distante, não mesmo, ela está seguidamente na minha frente, dentro de mim e em outra infinidade de lugares. Mas que barreira é essa que me impede de transformar essa fantasia em realidade? Ela pode não depender somente de mim, existem também barreiras fisícas, psicológicas, sentimentais, mas ela não é nada impossível, pelo menos penso que não. Talvez ela não se concretize com a perfeição que imaginei, mas não sou arrogante de não aceitar uma versão adaptada dessa fantasia, como um remake ou adaptação de um livro que acaba superando a original se a gente der a chance, pelo menos penso que não. Por outro lado, sou tão cego a ponto de imaginar coisas? Às vezes a fantasia, a perfeita, não a adaptada, parece tão próxima que chego a me sentir otimista, mesmo que não tenha motivo nenhum para me sentir assim. Ou será que tenho? Porque acho difícil acreditar que tirei algo do nada. Bom, ao menos tenho o direito de sonhar, né?

sábado, 27 de novembro de 2010

Três resoluções

1 - Não sentir pena de mim mesmo

Era inevitável que em algum momento da minha vida eu descobrisse esse sentimento que sempre repudiei, ainda mais depois do que aconteceu. Porém, como desculpa para mim mesmo demorei para identificar que era isso o que eu sentia, afinal, realmente nunca tinha sentido antes. Mas agora que senti renego ele com todas as minhas forças.

2 - Cuidar de mim

Por muito tempo vivi como dois, portanto não me cuidei como deveria. Agora que estou sozinho passei a cuidar mais de mim mesmo, mesmo que muitas vezes o esforço não faça jus ao resultado. Mas ainda tenho um longo caminho para ficar satisfeito comigo mesmo.

3 - Viver de acordo com o que eu acredito

Sempre admirei o mito em volta dos vikings, o modo como viam a vida e se comportavam perante ela. Contudo, nunca realmente vivi como um, sempre tímido demais, reprimido demais. Na verdade eu estava mais para um monge, negligenciando coisas, inclusive meus sentimentos, tudo em nome do estilo de vida que escolhi, tudo pelo bem da missão. Eu era um monge guerreiro, mas ainda assim um monge. Agora que aquela guerra terminou e outra se inicia posso ser o viking que sempre quis ser, que sempre fui segundo contam da minha infância. A partir de agora vou ser pragmático, beirando o niilismo. Vou ver, querer e ir atrás. Caso não consiga o que eu quero pelo menos vou saber que lutei até o fim e o Valhalla me aguarda. É o modo viking.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Perdido na floresta

Às vezes desce uma luz sobre mim e eu sinto como se entendesse tudo que tivesse para ser entendido, então tudo é belo, minha vida, minhas amizades, meus amores. Mas de repente tudo aquilo some e surge o medo, a desconfiança, o rancor. Eu ouço uma risada no fundo da minha mente, uma voz demente dizendo "Você não está livre ainda, garotinho assustado. Você nunca vai estar livre. Você é meu". Quem é esse estranho que mora na minha mente? Desconfio que seja o Lobo Mau, aquele que subi no palco para enfrentar quando era tão pequeno que hoje em dia sequer lembro da cena, sabendo dela por terceiros. De certa forma, foi a experiência definitiva da minha vida, aquela que tento fazer jus até hoje. Me pergunto porque o garotinho assustado não se juntou ao choro dos demais. Por que ele se sentiu obrigado a subir no palco e enfrentar o Lobo Mau? Estaria ele com medo como todos os outros? Imagino que sim. Então por que ele subiu no palco? Às vezes me pego pensando se seria por que no seu subconsciente o garotinho sabia o que teria que enfrentar mais para frente, como um soldado que não hesita entrar na linha de fogo por saber que está adiando o inevitável, e nesse caso prefere lutar nos seus próprios termos. Porque o garotinho não consegue se resignar ou fingir que está tudo bem como os outros, não por ser melhor do que eles, mas porque se não fizer isso o Lobo Mau o pegará. O que me faz pensar que talvez esse Lobo Mau também seja o garotinho, o que faria dele também o Lenhador. É a velha história do bem contra o mal, luz contra a escuridão, tudo dentro de uma única pessoa. Se por um lado o Lenhador luta para defender a inocência, representada pela Chapéuzinho Vermelho, o Lobo Mau quer destruí-la. Sua voz chega em mim agora como um rosnado, querendo destruir tudo o que tenho, minhas amizades, meu amor, minha inocência. Ele vai atrás do que eu mais valorizo, aquilo que mais machuca. Então surge o Lenhador e eu quero fugir, o garotinho cansou de lutar, ele quer paz. Ele quer desistir, alguém que cuide dele, afinal, ele é apenas um garotinho e naquela luta não há um vencedor, nunca houve. Até que surge Chapéuzinho Vermelho, toda chamativa com seu gorro rubro, um alvo ambulante para o Lobo Mau, que avança sobre ela e deixa o Lenhador lutando sozinho. Nisso o garotinho olha para os lados e não enxerga ninguém para ajudar, todos fugiram ou estão paralisados de medo, achando que estão seguros em seus casebes. Outra vez ele corre para o campo de batalha, sem saber o porquê de ter tomado essa decisão, e dessa vez o Lobo Mau corta sua pele, porque agora a luta se tornou real, o garotinho tomou consciência disso. Mas o garotinho é pequeno demais para lutar e ele grita pelo Lenhador enquanto as garras do Lobo Mau dilaceram sua pele. O garotinho protege Chapéuzinho Vermelho usando seu corpo, recebendo cada golpe que era destinado a ela, pois apesar de ser corajosa a garotinha é frágil demais para andar sozinha na floresta, algo que ninguém deveria fazer. É por ela que o garotinho voltou atrás, portanto não pode abrir ela de mão. O Lobo Mau se aproxima salivando para devorar as duas crianças aos seus pés, mas um golpe de machado corta o ar, tirando também um pedaço do monstro. Ele rosna e salta sobre o Lenhador, retomando a velha disputa. Chapéuzinho Vermelho aproveita a distração do Lobo Mau e corre de volta para a aldeia, lançando apenas um olhar ao garotinho ferido antes de atravessar o portão, como se o convidasse a vir junto. Era tudo que ele gostaria, mas se o fizesse, quem ajudaria o Lenhador a vencer aquela luta? Porque a luta era dele e ninguém lutaria em seu lugar. Mas a batalha não se desenrola mais no palco, mas na floresta, e ela é muito, muito real. Sem saber o que fazer, o garotinho senta no chão e observa a luta, se perguntando quem sairá mais ferido dessa vez, quem virá até ele caso enfim saia um vencedor daquela luta. Ou aquela batalha nunca teria um vencedor, sendo o garotinho o único possível perdedor, quando Chapéuzinho Vermelho se colocar mais uma vez no meio da disputa? Mesmo depois de todos esses anos eu ainda não sei a resposta, porque para isso eu teria que entender o que fez o garotinho subir no palco, quando só o que eu possa fazer é levantar hipóteses. Afinal, quem é o garotinho? Não só ele, mas o Lenhador e o Lobo Mau, quem são eles? Teria Chapéuzinho Vermelho a resposta? Será ela que o garotinho deveria conhecer? Chapéuzinho Vermelho quer conhecer ele? Mas então a luta daquele dia termina, outra trégua foi aceita por ambas as partes. O Lenhador segue seu caminho para a aldeia, olhando o garotinho com pena quando passa por ele. Por sua vez, o Lobo Mau tem um sorriso no rosto lupino quando toma o caminho de sua toca, mas faz questão de parar diante do garotinho assustado. Ele diz sua frase: "Você não está livre ainda, garotinho assustado. Você nunca vai estar livre. Você é meu". Mas ele acrescenta algo: "Você sou eu". Então desaparece entre as árvores. Mais uma vez o garotinho está sozinho na floresta, perdido, sem saber o caminho de casa. A aldeia é inalcançável, com seus altos muros de madeira, e a toca de um lobo não é lugar para um garotinho. Mesmo assim ele fica em pé e tenta achar seu caminho, se embrenhando cada vez mais na floresta, mas não irá demorar para o Lobo Mau seguir seu rastro, com o Lenhador em seu encalço. Ou talvez ele encontre Chapéuzinho Vermelho na floresta como fez tantas outras vezes. Começa tudo de novo.

O Lobo Mau pisa no palco outra vez e não há nenhum Lenhador. O garotinho sobe no palco. E rolam as cortinas.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Servo e o Guerreiro Pt. 1

A única coisa viva no salão grande e mal iluminado era o guerreiro sentado no trono. Ele estava praticamente atirado sobre o trono, de pernas cruzadas e com uma das mãos pendendo para fora do apoio de braço ricamente trabalhado em madeira, enquanto a outra suportava o enorme peso de sua cabeça, toda feita de cabelos e barba igualmente desgrenhados. A mão boa segurava um grande chifre cheio de cerveja e a cada respiração do homem o conteúdo abundante do copo improvisado molhava mais o piso de terra. Chovia lá fora e o teto de palha pouco impedia que os pingos entrassem, se misturando com a cerveja que era absorvida pela areia. O guerreiro olhava ao redor para o que sobrara de sua vida arruinada, pensando nos amigos e irmãos que perdeu na grande guerra, mas principalmente no rosto que tantas vezes lhe deu forças para continuar lutando.
De repente um grande trovão despertou o guerreiro de seu estupor e a lembrança do choque da parede de escudos causou um estremecimento em seu corpo. O chifre caiu no chão e se partiu em dois.
O som do chifre se partindo foi o suficiente para atrair a atenção do principal servo da casa, que esperava as ordens de seu senhor do lado de fora do salão. Ralla era seu nome e ele entrou no salão escuro procurando avidamente por seu mestre.
- Senhor? – perguntou ele em tom hesitante, sem conseguir enxergar direito.
O guerreiro não respondeu imediatamente. Quando finalmente se manifestou foi na forma de um grunhido rude, como um urso faria ao ser incomodado. Então o enorme homem se levantou com algum esforço, apoiando todo seu peso na perna esquerda, a única que ainda prestava. Os olhos do servo se estreitaram quando ele achou ter visto algo parecido com um ser humano na escuridão.
- Está tudo bem, Ralla – respondeu o guerreiro com o tom de voz mais delicado que conseguiu pronunciar, mas que ainda soava como o resmungo de um animal ferido. Ele se aproximou lentamente do servo, arrastando a perna direita, e simulou o que deveria ser um sorriso quando foi iluminado pela luz que entrava pelo vão da porta. – Mas não disse que não queria ser incomodado?
O servo se assustou diante da visão horrenda daquele homem destroçado e deu alguns passos para trás, batendo com as costas em uma das muitas vigas que davam suporte ao teto. Ele já tinha visto seu senhor algumas vezes desde que ele voltara, mas não deixava de se surpreender com o pouco que havia sobrado do rapaz brincalhão e cheio de vida que um dia conheceu.
- Não precisa se assustar – disse o guerreiro, virando as costas para o velho amigo que agora era nada mais do que um criado. Ele fingiu estar avaliando o salão, mas mantinha todo sua atenção no servo – Já não me teve como irmão certa vez, meu caro Ralla?
Depois de dar tempo suficiente para o homem recuperar sua postura, o guerreiro se virou outra vez para ele, ainda exibindo aquele sorriso medonho no rosto. E embora ainda houvesse uma certa ternura e diversão naquele olhar, os tempos eram simplesmente difíceis demais para alguém se dar ao trabalho de notar.
Ralla se manteve quieto, sem arriscar palpites quanto ao humor de seu mestre. Ele apenas concordou com a cabeça.
O guerreiro suspirou antes de continuar.
- Então por que olha para mim como se eu fosse algo desumano?
Ele fez aquela pergunta com uma naturalidade que deixou Ralla inquieto. Mas a verdade é que o velho guerreiro diante dele realmente parecia mais animal do que homem, muito provavelmente porque fazia anos que não se olhava em um espelho, e o sorriso tornava tudo cem vezes pior. Ainda assim Ralla virou a cabeça de lado ao ouvir aquela pergunta e estava visivelmente envergonhado.
- Perdão, senhor – disse o criado, encarando o guerreiro nos olhos mais uma vez. – São os homens, senhor. Eles estão nervosos. O inimigo se aproxima cada vez mais. – ele hesitou um pouco antes de continuar. – E posso falar francamente?
O guerreiro fez um sinal distraído com a mão para ele continuar e se debruçou sobre a viga mais próxima, testando sua firmeza.
Ralla engoliu em seco antes de prosseguir.
- Eles têm medo do senhor, senhor.
Isso fez o guerreiro soltar a trave e olhar com incredulidade para Ralla.
- Medo de mim! – exclamou ele, afetando a voz com toda a inocência que pôde fingir, e o rosto escondido pelo emaranhado de cabelos contribuía e muito para acobertar a simplicidade do que realmente sentia, que era nada mais do que puro divertimento. – Mas por que motivo? Por acaso não voltei tão bonito quanto da última vez tirando um ou outro arranhão insignificante? E se não for o caso, certamente voltei mais rico!
O final da frase já foi um grito para todos os criados ouvirem, e o guerreiro correu para a porta a fim de ser ainda mais enfático, erguendo a voz o mais alto possível.
- Então voltem a trabalhar, seus preguiçosos! E não quero saber de cara feia além da minha!
A gritaria deu resultado e os servos e soldados que ainda vagavam pela propriedade apressaram o passo, se juntando aos outros que buscavam abrigo na fortaleza natural das montanhas. Ralla assentiu com a cabeça e também começou a se afastar, mas quase caiu sobre as próprias pernas quando uma mão mutilada pousou pesada em seu ombro, e tamanha era a força do engate que ele não tinha certeza se conseguiria escapar caso tivesse essa intenção.
- Você fica – disse o guerreiro, sério. – Temos um assunto a tratar, eu e você.
E então retornou vagarosamente para a escuridão do salão.
- Meu senhor?
Ralla hesitou um pouco. Como não tinha sido convidado a entrar não queria testar mais uma vez a paciência de seu senhor, aquele ser tão estranho que voltou no lugar do homem que um dia considerou como um irmão. Por vezes o servo se perguntava se não era um impostor. Muitas vezes, após uma longa guerra, um guerreiro tomava o lugar de outro soldado falecido mais bem sucedido e retornava às terras do morto para se aproveitar de sua fortuna, pilhando o local e depois seguindo seu caminho. E por Odin, como fora longa essa guerra!
- Eu sei o que você está pensando – interrompeu o guerreiro com sua voz rouca vindo de algum lugar na escuridão. – E admito que até faz sentido. – ele fez outra pausa antes de continuar, mordendo e engolindo alguma coisa nesse intervalo – Mas pense comigo, Ralla: que tipo de idiota se daria ao trabalho de roubar uma pocilga dessas?
O guerreiro riu de sua própria afirmação, embora não tenha achado graça nenhuma. Então continuou cheio de veneno na voz:
- Sinceramente, a primeira coisa que eu pensei quando vi o estado desse lugar foi virar as costas e pegar o primeiro navio de volta ao continente. Como as coisas foram acabar assim, Ralla? Por acaso todo o ouro e toda a prata que mandei não foram o suficiente para fazer desse lugar mais do que um chiqueiro? Ou o velho investiu tudo em prostitutas e bebida?
Ralla não conseguiu manter a frieza diante dessas calúnias e deu um passo para frente, quase adentrando na escuridão junto com o velho guerreiro.
- O senhor não sabe como foi difícil para o seu pai durante a guerra, senhor – começou ele, fazendo toda a força que tinha para medir as palavras. Afinal, não podia faltar com respeito para com seu senhor, independente de concordar ou não com suas palavras. Pelo menos ele fora ensinado dessa maneira. – O rei quase dobrou os impostos para financiar a campanha no exterior, e por mais que tenham sido os tributos enviados pelo senhor e seus irmãos falecidos que botaram comida em nossas mesas e nos deram abrigo, não vou tolerar que o senhor fale assim de seu pai. Porque eu sei que o senhor não pode estar falando sério. Não se de fato o senhor for o mesmo homem que conheci tantos anos atrás.
Silêncio. A todo instante o servo esperava ver um machado arremessado em sua direção ou descendo contra seu crânio, mas nada aconteceu. Ele só podia ouvir a respiração pesada de seu senhor.
- Eu preciso de duas coisas, Ralla – disse o guerreiro de repente.
Ele se aproximou um pouco mais da luz e deixou a claridade iluminar quase todo seu corpo com a exceção do rosto.
- É só pedir, meu senhor.
- Primeiro, gostaria de um espelho, se é que vocês têm qualquer noção de civilidade nesse lugar medonho.
- Um espelho, senhor? – indagou Ralla, confuso com esse desejo de seu senhor. Era certamente a última coisa que ele imaginava ouvir.
- Sim. Um espelho.
O servo assentiu com a cabeça e correu para a casa principal. Lá ele pegou o pequeno espelho pendurado na parede do lado oposto da porta, aproveitando para apanhar os atiçadores de chama da forjaria no caminho, depois correu de volta ao grande salão com o passo apertado. Ralla estacou do lado de fora à espera de ordens.
Mas a primeira coisa que recebeu foi o resto de um talo de maça que voou através da porta. Então o guerreiro deu uma tossida monstruosa de algum lugar do salão e na sequência escarrou, adicionando o próprio muco a já bem regada areia do piso.
- Coloque o espelho sobre a mesa – ordenou calmamente.
Sem hesitar, Ralla entrou tateando na escuridão do salão, se guiando pelas vigas.
- Pode acender o fogo se achar melhor.
- Obrigado, senhor.
O servo ficou grato com a boa vontade de seu senhor e acendeu o fogo com entusiasmo. E quando as chamas já estavam suficientemente altas Ralla se virou para admirar o velho salão iluminado, algo que não acontecia desde a morte do antigo senhor, o homem que tinha como pai. Porém, essa boa lembrança desapareceu imediatamente quando seu senhor atual surgiu de trás de uma viga como uma aparição maligna, vestindo nada mais do que um calção, e a visão daquela coisa repleta de cicatrizes e deformidades fez Ralla perder o fôlego.
Seu mestre era praticamente Loki encarnado.
No primeiro momento o guerreiro não percebeu o olhar do servo, mas de repente estacou como se tivesse tomado conhecimento que estava sendo avaliado, então se empertigou todo para receber seu julgamento. O momento durou apenas alguns instantes, o suficiente para Ralla mudar um pouco a visão que tinha daquele homem, embora ainda não soubesse definir muito bem o que estava sentido. Agora o guerreiro mancava ligeiramente ao invés de arrastar o pé com dificuldade e foi dessa forma, dando passos precisos e orgulhosos, que ele alcançou a mesa e pegou o espelho com a mão boa.
Primeiro deu uma boa olhada no rosto, onde tateou com a ponta dos dedos a cicatriz que começava na testa, atravessava o olho cego e terminava quase na ponta do queixo. Quando viu o suficiente da ruína que abatera seu rosto, tentou enxergar as costas e outras partes do corpo que não conseguia ver seguidamente. Ralla percebeu a dificuldade de seu senhor e se adiantou.
- Deixe eu lhe ajudar, senhor.
O guerreiro olhou atônito para o criado e lhe ofereceu o espelho depois de uma certa hesitação. Ralla também hesitou por alguns instantes, mas raciocinou tão rápido quanto seu senhor e pegou o espelho, se posicionando atrás dele para que ele pudesse enxergar as costas. Os dois ficaram assim por alguns minutos e se surpreendiam e ficavam chocados a cada cicatriz e deformidade descoberta. Não apenas nas costas, mas nos braços, pernas e todo lugar que se possa imaginar.
No final o guerreiro pegou o espelho para si outra vez e deu uma última olhada no rosto. Ele o fez em silêncio e com uma expressão indiferente no primeiro momento, mas então fez algo que Ralla jamais imaginaria e muito menos compreendia, pelo menos não naquela hora: o velho guerreiro sorriu.
- Todas essas pancadas, arranhões, cortes e perfurações – começou ele ainda com aquele estranho sorriso no rosto. –, e eu ainda sou mais bonito do que você, Ralla.
E com isso ele devolveu o espelho à mesa e se virou sorridente para o homem que tinha como irmão. Ralla foi pego de surpresa sorrindo de volta.
- Isso significa que você não tem medo mais medo de mim? – perguntou o guerreiro, achando graça.
- Eu nunca tive, senhor. É que o senhor sempre foi feio, só fiquei mal acostumado durante sua ausência.
O guerreiro riu alto disso.
- Você perdeu o juízo, Ralla? Era sempre eu que precisava lhe arranjar mulheres. E por muitas vezes tive de pagar as pobres moças.
Dessa vez os dois que riram alto.
E foi aí que Ralla finalmente se deu conta que estava diante de um homem extraordinário. O simples esforço de permanecer em pé naquelas condições já deveria ser imenso, quanto mais lutar até a última batalha como ele fizera, quando muitos outros já haviam retornado sem terem sofrido um único arranhão. E a força de caráter para manter o bom humor, o orgulho e a sagacidade era simplesmente admirável, ainda mais depois de perder todos que amava e retornar para uma terra arrasada. O servo sentiu os olhos arderem e se afastou fungando quando as primeiras lágrimas brotaram.
O guerreiro não deu nenhum sinal de ter visto o descontrole de Ralla e se viu nada disse. Ele apenas retomou seus afazeres e vestiu a túnica e as botas.