Vou tentar voltar a atualizar o blog, que vinha parado há dois anos, mas agora o foco será apenas nos contos e similares. E para começar fiquem com o background do primeiro lobisomem que criei para o jogo Lobisomem: O Apocalipse...
Eu não sou um sujeito perfeito. Longe disso. E aqui vai o porquê:
Meu nome é Nicolas Volkmann e nasci em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, filho de papai e mamãe, mas nunca me senti realmente em casa aqui e recentemente descobri o motivo disso. Mas não vamos nos apressar, certo? Por enquanto, fiquemos no clichê. Meus pais.
Papai Jorge é um advogado podre de rico com ambições políticas (se é que ainda falta alguma depois de tanto que eu aprontei) e mamãe Anna é uma médica de renome (se é que ainda tem algum pelo mesmo motivo). Como não poderia deixar de ser, os dois me odeiam, claro. Não que eu os culpe, mas por algum motivo nunca reconheci os dois como família e meus recorrentes pesadelos e ataques de fúria na infância destruíram qualquer relação que pudéssemos ter. O que veio de lá para cá foi apenas a pá de cal. Minha única relação familiar de fato se deu com o tio Igor.
O velho morava no apartamento da frente no nosso condomínio de luxo e sempre me defendia quando eu aprontava. E mesmo sabendo que a preocupação e a raiva dos meus pais eram justas considerando que eles não podiam entender minha natureza, foi difícil deixar de simpatizar com o velho. Quando nos visitava naquela época ficava sempre me vigiando pelo canto do olho e desviava o olhar quando eu olhava de volta, como se eu fosse um ídolo do qual ele não fosse digno de admirar. Por algum motivo ele gostava de me chamar de Nikolai ou Niko, alegando que era meu nome verdadeiro, mas só revelaria o porquê muitos anos depois.
Todo fim de semana visitávamos sua fazenda no interior e lá eu me sentia tão mais tranquilo que depois de certo tempo meus pais simplesmente me despachavam sob os cuidados do velho e voltavam para o aspecto de suas vidas que fazia sentido, loucos para se verem livres de mim. Eu tinha 11 anos quando passei o primeiro fim de semana com o tio Igor e não demorou muito tempo até o velho me tratar como gente ao invés de um objeto que o Indiana Jones adoraria afanar.
Logo nos tornamos muito unidos e nosso passatempo predileto era ir para o meio do mato e brincar de pique-esconde ou encontrar objetos escondidos pelo outro. Na época eu era muito pequeno para entender, mas agora vejo que ele estava me testando. Treinando-me, na verdade. Não que eu me ressinta disso, Gaia sabe que não, até porque eu sempre saía vencedor de nossos pequenos duelos, e no começo cheguei a pensar que ele facilitava para mim, mas não era o caso porque no final de tudo o velho exibia uma expressão de derrota genuína demais para ser fingida. E ainda assim ele olhava para mim cheio de um orgulho que era de partir o coração.
Hoje em dia, olhando para trás, acho que o velho via em mim o potencial para ser tudo que ele jamais poderia ser. Mas só o que eu queria era transformar aquele orgulho em decepção, como eventualmente faria, porque não queria toda aquela responsabilidade, e quando cheguei à adolescência não tinha mais nenhum interesse nas tolices do tio Igor. O próprio colaborou com o nosso distanciamento quando afundou na bebida e perdeu sua fortuna (um sujeito bem estranho se mudou para o apartamento da frente da casa dos meus pais nessa época, e agora sei que ele me vigiava, substituindo tio Igor), virando a ovelha negra da família por algum tempo, até que eu acabei herdando esse título quando topei com uma gata chamada Heroína, que quase me matou.
A partir de agora a minha história avança mais rápido. Não porque se passa em um intervalo pequeno de tempo, mas porque eu estava tão doidão na época que mal notava coisas pequenas que aconteciam ao meu redor, como a decadência da raça humana e a passagem do tempo. Mas se existe algo que posso dizer em minha defesa é que os pesadelos que marcaram minha infância só aumentariam de intensidade com o tempo, a ponto de eu sofrer de insônia e estranhas visões diurnas, que assim como os sonhos tinham uma temática selvagem, variando de perseguições na floresta a sangrentas lutas animalescas. Até aí eu tive o apoio dos meus pais, mas isso só durou até eu começar a vender objetos da casa para poder comprar analgésicos mais fortes ou drogas, e nem preciso dizer que fui expulso de casa quando recorri à heroína...
O que na verdade não fez a coisa melhorar, só intensificou a experiência. Os sonhos adquiriram uma qualidade interativa e eu me sentia mais perto de descobrir do que tudo isso se tratava, sendo que ao mesmo tempo sabia estar exposto e correndo perigo. Mas o vício falou mais alto e as doses se tornaram tão frequentes a ponto das idéias mais idiotas parecerem sacadas geniais, entre as quais se destacam fazer amizade com um negão traficante com o dobro do meu tamanho, passar a responder apenas pelo apelido maneiro “Nick”, comprar uma motoca acabada e um apartamentinho fuleiro no Centro (outro cara esquisito passou a cuidar de mim quando me mudei, dessa vez morando no apartamento ao lado), e por fim virar sócio do mesmo negão traficante e abrir um bar com o discreto nome “O Uivo” na Lima e Silva. Mas a mudança que trouxe mais consequências foi quando me juntei ao Greenpeace.
Eu tinha 17 anos na época e vivia drogado com exceção das noites em que trabalhava no bar. Em uma dessas ocasiões notei um grupo discutindo política, mas o que mais chamou minha atenção foi uma francesa gostosinha mais velha do que eu chamada Julie, que não tirava os olhos de mim. Acabei me juntando a eles no final do expediente e descobri que estavam na cidade para protestar contra a abertura de uma subsidiária de uma empresa (“maligna” segundo suas palavras) chamada Pentex, nome que não significava nada para mim até aquele momento. Toda aquela conversa de poluição do mar, desmatamento e lixo tóxico mexeu comigo e na época eu não sabia por que, mas Julie era toda a motivação que eu precisava para viajar mundo afora, e foi o que fizemos quando nosso protesto não deu em nada.
Deixei o bar sob os cuidados do meu pequeno sócio e peguei um avião para o exterior junto com Julie e seus colegas. Viajamos a muitos lugares, protestando pacificamente contra tudo o que se pode imaginar, mas isso tudo passou por mim como um borrão. Passávamos a maior do tempo no barco de Ahmed, um argeliano barbudo que coordenava nossas operações – e supostamente pegava a Julie antes de mim –, mas do que eu mais me lembro são das noites que passei com ela pelas costas de seu “namorado” (nessas ocasiões ela dizia que eu era “irresistivelmente estragado”). Outra coisa que chamava a minha atenção era que eu podia jurar que o meu vizinho viajava conosco, ainda que ninguém mais o enxergasse...
Não demorou muito até eu adquirir uma posição de prestígio no grupo, e movido basicamente por drogas convenci a todos que deveríamos ser mais agressivos, então passamos a empunhar armas. Ahmed não concordou e foi embora. Julie ficou comigo, ainda que estivesse indecisa. A verdade é que quanto mais eu afundava na heroína mais me sentia perto de uma resposta para os meus sonhos, chegando ao ponto de acreditar que tinha conseguido captar uma mensagem sobre o fim do mundo durante um pico, e daí surgiu a vontade incontrolável de ser mais firme contra as ameaças ao meio-ambiente. Sei que parece loucura, mas eu já estava no ponto de confundir sonho com realidade, enxergando monstros no lugar de marinheiros de navios baleeiros e empregados de companhias petrolíferas poluidoras. E o tempo mostrou que eu não estava muito longe da verdade.
Minha primeira mudança ocorreu em algum país da América Central do qual eu nunca tinha ouvido falar e agora nem lembro mais do nome. Estávamos acampados do lado de fora de uma fábrica de produtos químicos isolada da humanidade, e a princípio ela não parecia fazer muito mal a ninguém, mas eu sentia algo de ruim nela. Na verdade, eu tinha desenvolvido uma habilidade quase sobrenatural para descobrir esse tipo de coisa, uma sensação que era intensificada pela heroína. A aura que emanava da fábrica era tão opressiva que eu me fechei dentro da minha barraca e afundei na heroína como nunca tinha afundado antes. Outra sensação que vinha cada vez mais à tona era a de perigo iminente. E como nós precisávamos nos manter a um passo à frente das autoridades naquela época, ninguém estava de olho em mim no momento, me tornando presa fácil para uma armadilha da Wyrm.
Mas foi quando eu estava mais destruído física e espiritualmente por causa da heroína que pude entender a mensagem dos sonhos com mais clareza, a ponto de enxergar os vultos de uma batalha épica envolvendo estranhas criaturas, da qual um enorme lobo prateado saíra vencedor. De repente o cenário mudou e tudo ficou mais escuro, parecendo perder o foco. Ainda era o mesmo lugar, mas uma espécie de película me separava do lobo, que agora se erguia em pé com um semblante fantasmagórico. Ele olhou para mim e disse em outra língua que sabia um segredo que poderia deter o Apocalipse se alguém fosse até ele no mundo espiritual. Então despertei com o barulho do tiroteio. A Wyrm viera atrás de mim.
Ainda não tinha voltado completamente a mim quando pus os pés para fora e por isso saí tropeçando em meio a um cenário de guerra. Seguranças portando metralhadoras tinham vindo de jipe das cercanias da fábrica e abriam fogo contra meus colegas, que estavam inferiorizados com simples revólveres, e logo dois foram alvejados. Naquela hora eu estava fora de mim, envolvido em minha própria batalha apocalíptica, por isso ignorei os riscos e puxei meu revólver. Não demorei a ser abatido, mas não antes de acertar um tiro perfeito na cabeça de um dos seguranças, causando uma reação que me assombra até hoje: o guarda que deveria estar morto se transformou em um monstro e partiu para cima de mim. Então ficou tudo vermelho e eu apaguei.
As semanas seguintes foram de muito descanso misturado com lapsos de consciência onde eu me via em um ambiente familiar. Sempre que dormia uma voz conhecida tentava me trazer de volta à vida apelando para o apelido Nikolai, até que um dia finalmente acordei e dei de cara com o rosto lacrimejante do tio Igor, reconhecendo o lugar como sua velha fazenda. Não conversamos muito no começo, afinal, eu estava na pior fase da abstinência e só não escapei porque ele me dopava com uma merda natural de aparência horrível e gosto ainda pior, mas com o tempo ele me permitiu sair da cama na qual me mantinha amarrado e fazer passeios no quintal da casa. Até que um dia recuperei integralmente minha liberdade de volta e o velho começou a me contar tudo.
Antes de tudo ele me explicou o que tinha acontecido no confronto com os seguranças-monstro, dizendo que eles eram algo chamado Dançarinos da Espiral Negra, lobisomens que tinham se corrompido e me perseguiam há muito tempo por eu pertencer a uma tribo dessas coisas chamada Presas de Prata, a mais nobre das treze tribos restantes e que tem cada vez menos membros. Segundo ele, os tais bandidões se aproveitaram do meu vício para me atrair até eles, mexendo na minha cabeça para tirarem os protetores da tribo do meu rastro. O velho disse que tomou conta de mim até a bebida o arruinar, mas depois outros assumiram seu lugar, o que explica de uma vez por todas meus vizinhos esquisitos e a sensação de ser vigiado. Sobre o confronto em si, ele explicou que eu entrei no que chamam de frenesi e matei um dos monstros antes de outro lobisomem da minha tribo aparecer para me salvar, e só pude ser contido depois que fui trazido até aqui. Julie e mais alguns companheiros meus conseguiram escapar. Decidi encerrar o dia depois que o velho me contou sobre a Maldição e a eterna batalha entre os Garou e a Wyrm.
Demorou muitas semanas até o velho contar tudo o que sabia sobre os lobisomens e a minha tribo, explicando que não era como eu, mas um parente que por algum motivo não sofreu a primeira mudança, ainda que fosse imune ao Delírio por causa disso. Outra novidade para mim é que eu descendia de Garous russos, o que explicava o meu sobrenome e o apelido Nikolai (“Volk” significava “lobo” em russo e o Volkmann surgiu da miscigenação com outros povos da Europa). Meu tio só não sabia dizer por que a Wyrm se interessava tanto por mim, que muitos Garous morreram para me proteger, então eu aproveitei a deixa para falar sobre a profecia do meu sonho. Por Gaia, como esse velho demorou a responder!
Ainda se passou um mês até eu me recuperar de todos os ferimentos e estar suficientemente seguro para retomar a vida em Porto Alegre, e só no dia marcado para a minha volta recebi uma resposta: o velho tinha chegado à conclusão que eu deveria ir até o Caern no Parque da Redenção atrás de respostas, dizendo que os anciões saberiam o que fazer, afinal, o sonho poderia ser mais do que uma mera armação da Wyrm. De fato, poderia muito bem ser a verdadeira razão do interesse dos Dançarinos em mim. Nesse meio tempo ele iria viajar a Europa e aos Estados Unidos com o mesmo objetivo. Por fim ele acabou me levando de carro e me largou no meu apartamentinho, mas não antes de deixar seu diário comigo para ajudar a tirar qualquer dúvida, e é nele que eu escrevo agora caso me encontrem morto em um beco e queiram saber o que aconteceu comigo. Pena que nenhum civil jamais o compreenderá...
Assim eu voltei para casa com uma nova esperança para mim e todo o mundo.
Eu não sou um sujeito perfeito. Longe disso. E aqui vai o porquê:
Meu nome é Nicolas Volkmann e nasci em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, filho de papai e mamãe, mas nunca me senti realmente em casa aqui e recentemente descobri o motivo disso. Mas não vamos nos apressar, certo? Por enquanto, fiquemos no clichê. Meus pais.
Papai Jorge é um advogado podre de rico com ambições políticas (se é que ainda falta alguma depois de tanto que eu aprontei) e mamãe Anna é uma médica de renome (se é que ainda tem algum pelo mesmo motivo). Como não poderia deixar de ser, os dois me odeiam, claro. Não que eu os culpe, mas por algum motivo nunca reconheci os dois como família e meus recorrentes pesadelos e ataques de fúria na infância destruíram qualquer relação que pudéssemos ter. O que veio de lá para cá foi apenas a pá de cal. Minha única relação familiar de fato se deu com o tio Igor.
O velho morava no apartamento da frente no nosso condomínio de luxo e sempre me defendia quando eu aprontava. E mesmo sabendo que a preocupação e a raiva dos meus pais eram justas considerando que eles não podiam entender minha natureza, foi difícil deixar de simpatizar com o velho. Quando nos visitava naquela época ficava sempre me vigiando pelo canto do olho e desviava o olhar quando eu olhava de volta, como se eu fosse um ídolo do qual ele não fosse digno de admirar. Por algum motivo ele gostava de me chamar de Nikolai ou Niko, alegando que era meu nome verdadeiro, mas só revelaria o porquê muitos anos depois.
Todo fim de semana visitávamos sua fazenda no interior e lá eu me sentia tão mais tranquilo que depois de certo tempo meus pais simplesmente me despachavam sob os cuidados do velho e voltavam para o aspecto de suas vidas que fazia sentido, loucos para se verem livres de mim. Eu tinha 11 anos quando passei o primeiro fim de semana com o tio Igor e não demorou muito tempo até o velho me tratar como gente ao invés de um objeto que o Indiana Jones adoraria afanar.
Logo nos tornamos muito unidos e nosso passatempo predileto era ir para o meio do mato e brincar de pique-esconde ou encontrar objetos escondidos pelo outro. Na época eu era muito pequeno para entender, mas agora vejo que ele estava me testando. Treinando-me, na verdade. Não que eu me ressinta disso, Gaia sabe que não, até porque eu sempre saía vencedor de nossos pequenos duelos, e no começo cheguei a pensar que ele facilitava para mim, mas não era o caso porque no final de tudo o velho exibia uma expressão de derrota genuína demais para ser fingida. E ainda assim ele olhava para mim cheio de um orgulho que era de partir o coração.
Hoje em dia, olhando para trás, acho que o velho via em mim o potencial para ser tudo que ele jamais poderia ser. Mas só o que eu queria era transformar aquele orgulho em decepção, como eventualmente faria, porque não queria toda aquela responsabilidade, e quando cheguei à adolescência não tinha mais nenhum interesse nas tolices do tio Igor. O próprio colaborou com o nosso distanciamento quando afundou na bebida e perdeu sua fortuna (um sujeito bem estranho se mudou para o apartamento da frente da casa dos meus pais nessa época, e agora sei que ele me vigiava, substituindo tio Igor), virando a ovelha negra da família por algum tempo, até que eu acabei herdando esse título quando topei com uma gata chamada Heroína, que quase me matou.
A partir de agora a minha história avança mais rápido. Não porque se passa em um intervalo pequeno de tempo, mas porque eu estava tão doidão na época que mal notava coisas pequenas que aconteciam ao meu redor, como a decadência da raça humana e a passagem do tempo. Mas se existe algo que posso dizer em minha defesa é que os pesadelos que marcaram minha infância só aumentariam de intensidade com o tempo, a ponto de eu sofrer de insônia e estranhas visões diurnas, que assim como os sonhos tinham uma temática selvagem, variando de perseguições na floresta a sangrentas lutas animalescas. Até aí eu tive o apoio dos meus pais, mas isso só durou até eu começar a vender objetos da casa para poder comprar analgésicos mais fortes ou drogas, e nem preciso dizer que fui expulso de casa quando recorri à heroína...
O que na verdade não fez a coisa melhorar, só intensificou a experiência. Os sonhos adquiriram uma qualidade interativa e eu me sentia mais perto de descobrir do que tudo isso se tratava, sendo que ao mesmo tempo sabia estar exposto e correndo perigo. Mas o vício falou mais alto e as doses se tornaram tão frequentes a ponto das idéias mais idiotas parecerem sacadas geniais, entre as quais se destacam fazer amizade com um negão traficante com o dobro do meu tamanho, passar a responder apenas pelo apelido maneiro “Nick”, comprar uma motoca acabada e um apartamentinho fuleiro no Centro (outro cara esquisito passou a cuidar de mim quando me mudei, dessa vez morando no apartamento ao lado), e por fim virar sócio do mesmo negão traficante e abrir um bar com o discreto nome “O Uivo” na Lima e Silva. Mas a mudança que trouxe mais consequências foi quando me juntei ao Greenpeace.
Eu tinha 17 anos na época e vivia drogado com exceção das noites em que trabalhava no bar. Em uma dessas ocasiões notei um grupo discutindo política, mas o que mais chamou minha atenção foi uma francesa gostosinha mais velha do que eu chamada Julie, que não tirava os olhos de mim. Acabei me juntando a eles no final do expediente e descobri que estavam na cidade para protestar contra a abertura de uma subsidiária de uma empresa (“maligna” segundo suas palavras) chamada Pentex, nome que não significava nada para mim até aquele momento. Toda aquela conversa de poluição do mar, desmatamento e lixo tóxico mexeu comigo e na época eu não sabia por que, mas Julie era toda a motivação que eu precisava para viajar mundo afora, e foi o que fizemos quando nosso protesto não deu em nada.
Deixei o bar sob os cuidados do meu pequeno sócio e peguei um avião para o exterior junto com Julie e seus colegas. Viajamos a muitos lugares, protestando pacificamente contra tudo o que se pode imaginar, mas isso tudo passou por mim como um borrão. Passávamos a maior do tempo no barco de Ahmed, um argeliano barbudo que coordenava nossas operações – e supostamente pegava a Julie antes de mim –, mas do que eu mais me lembro são das noites que passei com ela pelas costas de seu “namorado” (nessas ocasiões ela dizia que eu era “irresistivelmente estragado”). Outra coisa que chamava a minha atenção era que eu podia jurar que o meu vizinho viajava conosco, ainda que ninguém mais o enxergasse...
Não demorou muito até eu adquirir uma posição de prestígio no grupo, e movido basicamente por drogas convenci a todos que deveríamos ser mais agressivos, então passamos a empunhar armas. Ahmed não concordou e foi embora. Julie ficou comigo, ainda que estivesse indecisa. A verdade é que quanto mais eu afundava na heroína mais me sentia perto de uma resposta para os meus sonhos, chegando ao ponto de acreditar que tinha conseguido captar uma mensagem sobre o fim do mundo durante um pico, e daí surgiu a vontade incontrolável de ser mais firme contra as ameaças ao meio-ambiente. Sei que parece loucura, mas eu já estava no ponto de confundir sonho com realidade, enxergando monstros no lugar de marinheiros de navios baleeiros e empregados de companhias petrolíferas poluidoras. E o tempo mostrou que eu não estava muito longe da verdade.
Minha primeira mudança ocorreu em algum país da América Central do qual eu nunca tinha ouvido falar e agora nem lembro mais do nome. Estávamos acampados do lado de fora de uma fábrica de produtos químicos isolada da humanidade, e a princípio ela não parecia fazer muito mal a ninguém, mas eu sentia algo de ruim nela. Na verdade, eu tinha desenvolvido uma habilidade quase sobrenatural para descobrir esse tipo de coisa, uma sensação que era intensificada pela heroína. A aura que emanava da fábrica era tão opressiva que eu me fechei dentro da minha barraca e afundei na heroína como nunca tinha afundado antes. Outra sensação que vinha cada vez mais à tona era a de perigo iminente. E como nós precisávamos nos manter a um passo à frente das autoridades naquela época, ninguém estava de olho em mim no momento, me tornando presa fácil para uma armadilha da Wyrm.
Mas foi quando eu estava mais destruído física e espiritualmente por causa da heroína que pude entender a mensagem dos sonhos com mais clareza, a ponto de enxergar os vultos de uma batalha épica envolvendo estranhas criaturas, da qual um enorme lobo prateado saíra vencedor. De repente o cenário mudou e tudo ficou mais escuro, parecendo perder o foco. Ainda era o mesmo lugar, mas uma espécie de película me separava do lobo, que agora se erguia em pé com um semblante fantasmagórico. Ele olhou para mim e disse em outra língua que sabia um segredo que poderia deter o Apocalipse se alguém fosse até ele no mundo espiritual. Então despertei com o barulho do tiroteio. A Wyrm viera atrás de mim.
Ainda não tinha voltado completamente a mim quando pus os pés para fora e por isso saí tropeçando em meio a um cenário de guerra. Seguranças portando metralhadoras tinham vindo de jipe das cercanias da fábrica e abriam fogo contra meus colegas, que estavam inferiorizados com simples revólveres, e logo dois foram alvejados. Naquela hora eu estava fora de mim, envolvido em minha própria batalha apocalíptica, por isso ignorei os riscos e puxei meu revólver. Não demorei a ser abatido, mas não antes de acertar um tiro perfeito na cabeça de um dos seguranças, causando uma reação que me assombra até hoje: o guarda que deveria estar morto se transformou em um monstro e partiu para cima de mim. Então ficou tudo vermelho e eu apaguei.
As semanas seguintes foram de muito descanso misturado com lapsos de consciência onde eu me via em um ambiente familiar. Sempre que dormia uma voz conhecida tentava me trazer de volta à vida apelando para o apelido Nikolai, até que um dia finalmente acordei e dei de cara com o rosto lacrimejante do tio Igor, reconhecendo o lugar como sua velha fazenda. Não conversamos muito no começo, afinal, eu estava na pior fase da abstinência e só não escapei porque ele me dopava com uma merda natural de aparência horrível e gosto ainda pior, mas com o tempo ele me permitiu sair da cama na qual me mantinha amarrado e fazer passeios no quintal da casa. Até que um dia recuperei integralmente minha liberdade de volta e o velho começou a me contar tudo.
Antes de tudo ele me explicou o que tinha acontecido no confronto com os seguranças-monstro, dizendo que eles eram algo chamado Dançarinos da Espiral Negra, lobisomens que tinham se corrompido e me perseguiam há muito tempo por eu pertencer a uma tribo dessas coisas chamada Presas de Prata, a mais nobre das treze tribos restantes e que tem cada vez menos membros. Segundo ele, os tais bandidões se aproveitaram do meu vício para me atrair até eles, mexendo na minha cabeça para tirarem os protetores da tribo do meu rastro. O velho disse que tomou conta de mim até a bebida o arruinar, mas depois outros assumiram seu lugar, o que explica de uma vez por todas meus vizinhos esquisitos e a sensação de ser vigiado. Sobre o confronto em si, ele explicou que eu entrei no que chamam de frenesi e matei um dos monstros antes de outro lobisomem da minha tribo aparecer para me salvar, e só pude ser contido depois que fui trazido até aqui. Julie e mais alguns companheiros meus conseguiram escapar. Decidi encerrar o dia depois que o velho me contou sobre a Maldição e a eterna batalha entre os Garou e a Wyrm.
Demorou muitas semanas até o velho contar tudo o que sabia sobre os lobisomens e a minha tribo, explicando que não era como eu, mas um parente que por algum motivo não sofreu a primeira mudança, ainda que fosse imune ao Delírio por causa disso. Outra novidade para mim é que eu descendia de Garous russos, o que explicava o meu sobrenome e o apelido Nikolai (“Volk” significava “lobo” em russo e o Volkmann surgiu da miscigenação com outros povos da Europa). Meu tio só não sabia dizer por que a Wyrm se interessava tanto por mim, que muitos Garous morreram para me proteger, então eu aproveitei a deixa para falar sobre a profecia do meu sonho. Por Gaia, como esse velho demorou a responder!
Ainda se passou um mês até eu me recuperar de todos os ferimentos e estar suficientemente seguro para retomar a vida em Porto Alegre, e só no dia marcado para a minha volta recebi uma resposta: o velho tinha chegado à conclusão que eu deveria ir até o Caern no Parque da Redenção atrás de respostas, dizendo que os anciões saberiam o que fazer, afinal, o sonho poderia ser mais do que uma mera armação da Wyrm. De fato, poderia muito bem ser a verdadeira razão do interesse dos Dançarinos em mim. Nesse meio tempo ele iria viajar a Europa e aos Estados Unidos com o mesmo objetivo. Por fim ele acabou me levando de carro e me largou no meu apartamentinho, mas não antes de deixar seu diário comigo para ajudar a tirar qualquer dúvida, e é nele que eu escrevo agora caso me encontrem morto em um beco e queiram saber o que aconteceu comigo. Pena que nenhum civil jamais o compreenderá...
Assim eu voltei para casa com uma nova esperança para mim e todo o mundo.
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