A única coisa viva no salão grande e mal iluminado era o guerreiro sentado no trono. Ele estava praticamente atirado sobre o trono, de pernas cruzadas e com uma das mãos pendendo para fora do apoio de braço ricamente trabalhado em madeira, enquanto a outra suportava o enorme peso de sua cabeça, toda feita de cabelos e barba igualmente desgrenhados. A mão boa segurava um grande chifre cheio de cerveja e a cada respiração do homem o conteúdo abundante do copo improvisado molhava mais o piso de terra. Chovia lá fora e o teto de palha pouco impedia que os pingos entrassem, se misturando com a cerveja que era absorvida pela areia. O guerreiro olhava ao redor para o que sobrara de sua vida arruinada, pensando nos amigos e irmãos que perdeu na grande guerra, mas principalmente no rosto que tantas vezes lhe deu forças para continuar lutando.
De repente um grande trovão despertou o guerreiro de seu estupor e a lembrança do choque da parede de escudos causou um estremecimento em seu corpo. O chifre caiu no chão e se partiu em dois.
O som do chifre se partindo foi o suficiente para atrair a atenção do principal servo da casa, que esperava as ordens de seu senhor do lado de fora do salão. Ralla era seu nome e ele entrou no salão escuro procurando avidamente por seu mestre.
- Senhor? – perguntou ele em tom hesitante, sem conseguir enxergar direito.
O guerreiro não respondeu imediatamente. Quando finalmente se manifestou foi na forma de um grunhido rude, como um urso faria ao ser incomodado. Então o enorme homem se levantou com algum esforço, apoiando todo seu peso na perna esquerda, a única que ainda prestava. Os olhos do servo se estreitaram quando ele achou ter visto algo parecido com um ser humano na escuridão.
- Está tudo bem, Ralla – respondeu o guerreiro com o tom de voz mais delicado que conseguiu pronunciar, mas que ainda soava como o resmungo de um animal ferido. Ele se aproximou lentamente do servo, arrastando a perna direita, e simulou o que deveria ser um sorriso quando foi iluminado pela luz que entrava pelo vão da porta. – Mas não disse que não queria ser incomodado?
O servo se assustou diante da visão horrenda daquele homem destroçado e deu alguns passos para trás, batendo com as costas em uma das muitas vigas que davam suporte ao teto. Ele já tinha visto seu senhor algumas vezes desde que ele voltara, mas não deixava de se surpreender com o pouco que havia sobrado do rapaz brincalhão e cheio de vida que um dia conheceu.
- Não precisa se assustar – disse o guerreiro, virando as costas para o velho amigo que agora era nada mais do que um criado. Ele fingiu estar avaliando o salão, mas mantinha todo sua atenção no servo – Já não me teve como irmão certa vez, meu caro Ralla?
Depois de dar tempo suficiente para o homem recuperar sua postura, o guerreiro se virou outra vez para ele, ainda exibindo aquele sorriso medonho no rosto. E embora ainda houvesse uma certa ternura e diversão naquele olhar, os tempos eram simplesmente difíceis demais para alguém se dar ao trabalho de notar.
Ralla se manteve quieto, sem arriscar palpites quanto ao humor de seu mestre. Ele apenas concordou com a cabeça.
O guerreiro suspirou antes de continuar.
- Então por que olha para mim como se eu fosse algo desumano?
Ele fez aquela pergunta com uma naturalidade que deixou Ralla inquieto. Mas a verdade é que o velho guerreiro diante dele realmente parecia mais animal do que homem, muito provavelmente porque fazia anos que não se olhava em um espelho, e o sorriso tornava tudo cem vezes pior. Ainda assim Ralla virou a cabeça de lado ao ouvir aquela pergunta e estava visivelmente envergonhado.
- Perdão, senhor – disse o criado, encarando o guerreiro nos olhos mais uma vez. – São os homens, senhor. Eles estão nervosos. O inimigo se aproxima cada vez mais. – ele hesitou um pouco antes de continuar. – E posso falar francamente?
O guerreiro fez um sinal distraído com a mão para ele continuar e se debruçou sobre a viga mais próxima, testando sua firmeza.
Ralla engoliu em seco antes de prosseguir.
- Eles têm medo do senhor, senhor.
Isso fez o guerreiro soltar a trave e olhar com incredulidade para Ralla.
- Medo de mim! – exclamou ele, afetando a voz com toda a inocência que pôde fingir, e o rosto escondido pelo emaranhado de cabelos contribuía e muito para acobertar a simplicidade do que realmente sentia, que era nada mais do que puro divertimento. – Mas por que motivo? Por acaso não voltei tão bonito quanto da última vez tirando um ou outro arranhão insignificante? E se não for o caso, certamente voltei mais rico!
O final da frase já foi um grito para todos os criados ouvirem, e o guerreiro correu para a porta a fim de ser ainda mais enfático, erguendo a voz o mais alto possível.
- Então voltem a trabalhar, seus preguiçosos! E não quero saber de cara feia além da minha!
A gritaria deu resultado e os servos e soldados que ainda vagavam pela propriedade apressaram o passo, se juntando aos outros que buscavam abrigo na fortaleza natural das montanhas. Ralla assentiu com a cabeça e também começou a se afastar, mas quase caiu sobre as próprias pernas quando uma mão mutilada pousou pesada em seu ombro, e tamanha era a força do engate que ele não tinha certeza se conseguiria escapar caso tivesse essa intenção.
- Você fica – disse o guerreiro, sério. – Temos um assunto a tratar, eu e você.
E então retornou vagarosamente para a escuridão do salão.
- Meu senhor?
Ralla hesitou um pouco. Como não tinha sido convidado a entrar não queria testar mais uma vez a paciência de seu senhor, aquele ser tão estranho que voltou no lugar do homem que um dia considerou como um irmão. Por vezes o servo se perguntava se não era um impostor. Muitas vezes, após uma longa guerra, um guerreiro tomava o lugar de outro soldado falecido mais bem sucedido e retornava às terras do morto para se aproveitar de sua fortuna, pilhando o local e depois seguindo seu caminho. E por Odin, como fora longa essa guerra!
- Eu sei o que você está pensando – interrompeu o guerreiro com sua voz rouca vindo de algum lugar na escuridão. – E admito que até faz sentido. – ele fez outra pausa antes de continuar, mordendo e engolindo alguma coisa nesse intervalo – Mas pense comigo, Ralla: que tipo de idiota se daria ao trabalho de roubar uma pocilga dessas?
O guerreiro riu de sua própria afirmação, embora não tenha achado graça nenhuma. Então continuou cheio de veneno na voz:
- Sinceramente, a primeira coisa que eu pensei quando vi o estado desse lugar foi virar as costas e pegar o primeiro navio de volta ao continente. Como as coisas foram acabar assim, Ralla? Por acaso todo o ouro e toda a prata que mandei não foram o suficiente para fazer desse lugar mais do que um chiqueiro? Ou o velho investiu tudo em prostitutas e bebida?
Ralla não conseguiu manter a frieza diante dessas calúnias e deu um passo para frente, quase adentrando na escuridão junto com o velho guerreiro.
- O senhor não sabe como foi difícil para o seu pai durante a guerra, senhor – começou ele, fazendo toda a força que tinha para medir as palavras. Afinal, não podia faltar com respeito para com seu senhor, independente de concordar ou não com suas palavras. Pelo menos ele fora ensinado dessa maneira. – O rei quase dobrou os impostos para financiar a campanha no exterior, e por mais que tenham sido os tributos enviados pelo senhor e seus irmãos falecidos que botaram comida em nossas mesas e nos deram abrigo, não vou tolerar que o senhor fale assim de seu pai. Porque eu sei que o senhor não pode estar falando sério. Não se de fato o senhor for o mesmo homem que conheci tantos anos atrás.
Silêncio. A todo instante o servo esperava ver um machado arremessado em sua direção ou descendo contra seu crânio, mas nada aconteceu. Ele só podia ouvir a respiração pesada de seu senhor.
- Eu preciso de duas coisas, Ralla – disse o guerreiro de repente.
Ele se aproximou um pouco mais da luz e deixou a claridade iluminar quase todo seu corpo com a exceção do rosto.
- É só pedir, meu senhor.
- Primeiro, gostaria de um espelho, se é que vocês têm qualquer noção de civilidade nesse lugar medonho.
- Um espelho, senhor? – indagou Ralla, confuso com esse desejo de seu senhor. Era certamente a última coisa que ele imaginava ouvir.
- Sim. Um espelho.
O servo assentiu com a cabeça e correu para a casa principal. Lá ele pegou o pequeno espelho pendurado na parede do lado oposto da porta, aproveitando para apanhar os atiçadores de chama da forjaria no caminho, depois correu de volta ao grande salão com o passo apertado. Ralla estacou do lado de fora à espera de ordens.
Mas a primeira coisa que recebeu foi o resto de um talo de maça que voou através da porta. Então o guerreiro deu uma tossida monstruosa de algum lugar do salão e na sequência escarrou, adicionando o próprio muco a já bem regada areia do piso.
- Coloque o espelho sobre a mesa – ordenou calmamente.
Sem hesitar, Ralla entrou tateando na escuridão do salão, se guiando pelas vigas.
- Pode acender o fogo se achar melhor.
- Obrigado, senhor.
O servo ficou grato com a boa vontade de seu senhor e acendeu o fogo com entusiasmo. E quando as chamas já estavam suficientemente altas Ralla se virou para admirar o velho salão iluminado, algo que não acontecia desde a morte do antigo senhor, o homem que tinha como pai. Porém, essa boa lembrança desapareceu imediatamente quando seu senhor atual surgiu de trás de uma viga como uma aparição maligna, vestindo nada mais do que um calção, e a visão daquela coisa repleta de cicatrizes e deformidades fez Ralla perder o fôlego.
Seu mestre era praticamente Loki encarnado.
No primeiro momento o guerreiro não percebeu o olhar do servo, mas de repente estacou como se tivesse tomado conhecimento que estava sendo avaliado, então se empertigou todo para receber seu julgamento. O momento durou apenas alguns instantes, o suficiente para Ralla mudar um pouco a visão que tinha daquele homem, embora ainda não soubesse definir muito bem o que estava sentido. Agora o guerreiro mancava ligeiramente ao invés de arrastar o pé com dificuldade e foi dessa forma, dando passos precisos e orgulhosos, que ele alcançou a mesa e pegou o espelho com a mão boa.
Primeiro deu uma boa olhada no rosto, onde tateou com a ponta dos dedos a cicatriz que começava na testa, atravessava o olho cego e terminava quase na ponta do queixo. Quando viu o suficiente da ruína que abatera seu rosto, tentou enxergar as costas e outras partes do corpo que não conseguia ver seguidamente. Ralla percebeu a dificuldade de seu senhor e se adiantou.
- Deixe eu lhe ajudar, senhor.
O guerreiro olhou atônito para o criado e lhe ofereceu o espelho depois de uma certa hesitação. Ralla também hesitou por alguns instantes, mas raciocinou tão rápido quanto seu senhor e pegou o espelho, se posicionando atrás dele para que ele pudesse enxergar as costas. Os dois ficaram assim por alguns minutos e se surpreendiam e ficavam chocados a cada cicatriz e deformidade descoberta. Não apenas nas costas, mas nos braços, pernas e todo lugar que se possa imaginar.
No final o guerreiro pegou o espelho para si outra vez e deu uma última olhada no rosto. Ele o fez em silêncio e com uma expressão indiferente no primeiro momento, mas então fez algo que Ralla jamais imaginaria e muito menos compreendia, pelo menos não naquela hora: o velho guerreiro sorriu.
- Todas essas pancadas, arranhões, cortes e perfurações – começou ele ainda com aquele estranho sorriso no rosto. –, e eu ainda sou mais bonito do que você, Ralla.
E com isso ele devolveu o espelho à mesa e se virou sorridente para o homem que tinha como irmão. Ralla foi pego de surpresa sorrindo de volta.
- Isso significa que você não tem medo mais medo de mim? – perguntou o guerreiro, achando graça.
- Eu nunca tive, senhor. É que o senhor sempre foi feio, só fiquei mal acostumado durante sua ausência.
O guerreiro riu alto disso.
- Você perdeu o juízo, Ralla? Era sempre eu que precisava lhe arranjar mulheres. E por muitas vezes tive de pagar as pobres moças.
Dessa vez os dois que riram alto.
E foi aí que Ralla finalmente se deu conta que estava diante de um homem extraordinário. O simples esforço de permanecer em pé naquelas condições já deveria ser imenso, quanto mais lutar até a última batalha como ele fizera, quando muitos outros já haviam retornado sem terem sofrido um único arranhão. E a força de caráter para manter o bom humor, o orgulho e a sagacidade era simplesmente admirável, ainda mais depois de perder todos que amava e retornar para uma terra arrasada. O servo sentiu os olhos arderem e se afastou fungando quando as primeiras lágrimas brotaram.
O guerreiro não deu nenhum sinal de ter visto o descontrole de Ralla e se viu nada disse. Ele apenas retomou seus afazeres e vestiu a túnica e as botas.