Décadas após a magia ser largamente disseminada pelo Mundo, a exploração de ruínas antigas e a busca insensata por conhecimento arcano tornaram-se as atividades mais comuns de Ophir, assim como a coleta de todo e qualquer artefato que pudesse conter tal poder ou no mínimo explicar como ele surgiu. Desconfiados, os gnomos diziam ter simplesmente inventado essa arte, mas essa desculpa certamente só enganava aqueles desprovidos de intelecto. De qualquer forma, o mistério somente ativava a curiosidade dos mais sagazes, e logo todo tipo de indivíduo e organização estava montando expedições para os quatro cantos do Mundo. Do lado dos humanos, tanto os clérigos, assustados com este novo poderio e inicialmente furiosos com a afronta cometida contra seus Deuses, quanto os guerreiros, interessados em ver se a magia arcana poderia ajudá-los em combate, queriam tirar proveito da situação; quanto aos elfos, muitos andarilhos errantes foram atrás de respostas, na tentativa de montar o quebra-cabeça que é a sua própria existência. Este período ficou conhecido como as Cruzadas, momento em que muitos perderam as vidas devido a confrontos e desconfiança, pois as atenções recaiam principalmente sobre os gnomos, na época em conflito com os Homens do Norte e também com os Anões das Montanhas. De fato a magia foi um dos estopins do confronto entre aqueles três povos – evento que ficou conhecido como as Guerras Nórdicas –, uma vez que assustados com as perguntas os professores da magia optaram por encerrar seus ensinos temporariamente; esta atitude, juntamente com a guerra que estava em andamento na região, afastou os exploradores estrangeiros, conduzindo-os para outras direções. É a partir deste ponto que os historiadores consideram iniciado o período das Cruzadas.
O período não durou mais de 30 anos, mas suas repercussões foram seriíssimas, uma vez que os governantes de quase toda cidade ou vila estavam mais interessados em lucrar com a nova descoberta do que em cuidar de seus povos. Além disso, havia também o desejo de encontrar respostas, e que tudo aquilo podia ser um sinal dos Deuses. Muitos regentes assumiram o trono enquanto reis perambulavam por toda Ophir junto de seus exércitos, Cavaleiros honrados sumiam de suas cavalarias e seguiam estranhas rotas, atingindo muitas vezes fins terríveis ou simplesmente desaparecendo em terrenos sombrios... havia muito dispersão, cada um seguindo o caminho que desejava, embora constantemente se encontrassem em viagem e relatassem suas aventuras. Durante as Cruzadas o verde virou barro e lama, pois agricultores e gente humilde em geral saiam em busca de terras melhores ou governantes mais justos; não era incomum encontrar carroças viradas e pilhas de ossos em trilhas longínquas. Mas o mais terrível eram as sinistras criaturas que, despertas de seus lares por ambiciosos aventureiros, vagavam na escuridão da noite, vitimando as mais diversas presas. Fome e morte foram a face dos primeiros anos das Cruzadas, mas uma década depois o mais assustador era o desconhecido; que fim teriam sofrido uma dúzia de reis e uma centena de Cavaleiros que simplesmente desapareceram? Muitos relatos conflituosos foram ouvidos, alguns sobre florestas amaldiçoadas e outros sobre fatos sem dúvida fictícios, como pássaros de fogo e serpentes com sete cabeças. A única esperança vinha na forma de estranhos guerreiros com armaduras brilhantes e poderes nunca antes visto, os chamados Paladinos: com um código de ética impecável, estes enviados dos Deuses pregavam o bem de uma maneira incansável, e foram principais responsáveis pela maneira pacífica que tudo acabou, anos depois. Muitos deles nunca disseram uma palavra ou tiraram o elmo, e eram indivíduos sem origem alguma e quando terminavam suas missões nunca mais eram vistos, mas a maioria eram pessoas comuns que certo dia ouviram o Chamado e devotaram suas vidas a fazer o bem. Entretanto, mesmo com o visível fracasso das explorações, jovens aprendizes de mago continuavam em busca de conhecimento, suas motivações ainda intactas.
De qualquer maneira, se quisessem encontrar algo deveriam se unir, e após realizarem uma inédita reunião decidiriam criar o Conselho dos Magos, grupo voltado para angariar fundos com o fim de bancar explorações mais audaciosas; e mesmo com as Cruzadas certamente no fim, levando em conta que não havia mais terreno para explorar, o Conselho deveria descobrir uma forma de improvisar. Certo dia, não muito depois da reunião, um dos membros teve uma estranha visão na qual encontrava um objeto valiosíssimo no fundo mar, então cerca de um mês depois o grupo conseguiu juntar a verba necessária para a construção de um grande navio, e nele colocaram diversos aparatos místicos e coisas de mago, na tentativa de facilitar a busca por artefatos arcanos. Surpreendentemente, logo na primeira zarpada uma espécie de radar que haviam instalado na embarcação identificou um objeto mágico perdido no Grande Mar de Ophir, mas estava muito longe da costa e os marinheiros tinham receio de ir tão longe. Porém, após serem devidamente ressarcidos, concordaram em levá-los até o ponto indicado no radar, e a viagem foi tranqüila, embora eles não parecessem se aproximar do objeto. No fim do dia o radar não indicava mais nada, e os próprios magos já achavam melhor retornar, mas infelizmente não foi possível: uma enorme fera marinha surgiu do fundo mais negro do mar e enrolou seus tentáculos em volta do navio, puxando ele para baixo e matando a maioria dos tripulantes. A criatura perseguia os sobreviventes sem piedade enquanto eles tentavam fugir numa espécie de bote que haviam conjurado, mas logo seriam alcançados. Porém, na distância conseguiram divisar uma caravela negra que se aproximava velozmente, e ficaram muito surpresos quando a fera voltou ao fundo do mar com apenas um comando de um dos tripulantes, um estranho elfo de vestes negras. De fato a embarcação era de Ilimani, e os jovens magos estavam longe da salvação...
Eram nove sobreviventes, todos treinados nos conhecimentos Arcanos, portanto não reagiram, curiosos para saber aonde seriam levados. Em um calabouço escuro dentro da caravela o grupo ficou por exatos 60 dias, período pelo qual passaram por interrogatórios e torturas, mas também por um perturbador estilo de ensino, no qual eram obrigados a ouvir sermões sobre o assassinato de Harcon pelas mãos de Beuvar enquanto eram surrados. Passados os 60 dias, foram levados para Ilimani e trancafiados numa torre maligna repleta de livros de magia avançadíssima, relíquias que provavelmente os próprios gnomos desconheciam, que falavam sobre coisas que gnomo algum ensinaria. Fora isso, havia vários livros de história relatando a ganância de Beuvar e o martírio de Harcon, assim como as origens locais da magia, material que provavelmente fora muito usado para doutrinar gerações de elfos e do que mais vivesse naquela região maldita. Feridos e sob pressão, o grupo afundou naquele material, uma vez que o acesso ao poder descrito nos livros de magia avançada só seria possível se também lessem os livros de história, e se pretendiam escapar algum dia teriam de ler os livros de qualquer maneira. Muitos anos se passaram e os aprendizes de mago eram lentamente corrompidos, pois a cada página dos livros de história eles evoluíam mais na magia arcana deturpada de Ilimani. Tudo o que estava escrito em ambos os livros convergia para somente um rumo; a busca pelo poder absoluto acima de qualquer outra ambição. Mas para isso, os discípulos precisavam de motivação, e ela estava nos trechos dos livros repletos de ódio que relatavam o fim trágico e injusto de Harcon. Desprovidos da liberdade e destruídos psicologicamente, os Nove foram vítimas fáceis da doutrinação e antes mesmo de perceberem isso já estavam corrompidos. Desejando atingir poder suficiente para desafiar e eliminar o Panteão na tentativa de vingar Harcon e dar poder ao Demônio, a quem agora serviam, a recém formada seita prestou homenagem a Morte e encerrou seu ensinamento realizando um ritual profano no qual desistiram da carne, alcançando a vida eterna. Seus corpos outrora fracos e franzinos tornaram-se ossos e lhes deram envergadura, suas mentes dúbias ganharam precisão e sabedoria. Indestrutíveis e impenetráveis, eles viraram os Arautos do Caos. O preço? Suas almas...
Destruir a prisão foi fácil, mas o Demônio ficou realmente satisfeito quando os viu, passo a passo destruindo tudo o que viam pela frente, nove esqueletos ambulantes causando pânico no que antigamente era aterrorizante. Seres de poder incomensurável escondiam-se debaixo da terra, clérigos caídos trancavam-se em seus templos, magos negros faziam o mesmo em suas torres... o plano do Demônio dera certo: seus novos seguidores eram sem dúvida alguma a criação mais horrenda de todo o Mundo. O período que muitos anos depois foi chamado de a Fecundação do Mal durou nove anos. A terra de Ilimani estava devastada pela peste e pelo fogo, e os Nove sentavam em seus tronos de ossos, negros como o Nada, vazio como seu interior. No fim daquele ano o Demônio lhes fez uma visita na forma de uma besta de nove cabeças e oitenta metros de altura, e seus altivos cavaleiros negros curvaram-se, ansiosos por orientação. Mas não houve diálogo, uma vez que nada havia para ser dito, tudo estava tão claro quanto o céu outrora fora em Ophir. Em compensação, todos foram devidamente recompensados: nove enormes capas negras e espadas bestiais, feitas de ossos, foram distribuídas, e um templo maligno foi erguido diante deles, onde fiéis poderiam adorá-los para lhes fortalecer durante a batalha definitiva. Com um mero pensamento o Demônio ressuscitou trinta cadáveres e os colocou a rezar, escolhendo o mais forte deles como Sacerdote. Agradecidos, os Nove fizeram uma prece em nome do Demônio e seu Senhor lhes deu novos nomes, intraduzíveis em qualquer língua terrestre. Encerrado o encontro, o Demônio desapareceu, deixando nove gigantescos hipogrifos negros em seu lugar. O recado era claro: hora de atacar. Obedecendo ao comando de seus donos, as bestas foram até eles, famintas por carne fresca, e naquela mesma noite os Nove alçavam vôo. Enfim chegaria o momento da Vingança de Harcon.
O palco estava montado. Decadente devido as Cruzadas, a Terra de Ophir certamente não faria frente a tal ameaça, e isso começou a se tornar bastante claro logo quando os Nove deram o primeiro passo na costa do mar, varrendo qualquer ser vivo que aparecia na frente. Os guerreiros Paladinos tentaram oferecer resistência, defendendo seus templos ou cidades com a própria vida, mas sozinhos nada fariam, afinal cada um defendia uma causa diferente. Caindo um a um juntamente com seus templos, os heróis demoraram a se unir, e quando o fizeram já era tarde demais: todos foram mortos. Uma vez que o alvo principal eram os templos, sem os quais o Panteão enfraqueceria, a primeira etapa do plano estava concretizada. A segunda tarefa seria a eliminação de toda a vida em Ophir, e se os próprios Deuses não decidissem interferir, eles também obteriam sucesso naquela ambição, pois não havia capacidade de resistência naquelas condições; os poucos heróis que restavam eram errantes ou estavam desaparecidos. Mas os Senhores de Ophir logicamente optaram por ajudar seus povos, pois sem habitantes não haveria Terra para cuidar e nem equilíbrio para manter, infelizmente Deuses demoram muito a raciocinar e milhares já haviam perecido antes de eles chegarem a uma conclusão tão óbvia. De qualquer forma, devido a uma arrogância pura os Nove não esperavam uma reação tão cedo, mas como o Panteão estava debilitado, nada que os Senhores pudessem fazer suplantaria o poder do Demônio, que controlava suas marionetes de seu reino obscuro. E de fato era verdade, mas mesmo desprovidos de grande parte de seus poderes, os Senhores ainda poderiam fazer algo, embora não diretamente; assim sendo, por três dias e três noites procuraram em todo o Mundo por alguém digno e capaz de se tornar Arauto do Panteão, e na figura quase cadavérica do antigo rei de Beuvar encontraram seu homem. O nome dele era Achlon II.
O Rei Achlon Jeremias II fora um grande governante e bom homem, mas se perdera durante as Cruzadas quando cruzara com um estranho ser, adormecendo inábil dentro de uma tumba maligna. Suas tropas de elite, os Templários, passaram anos à procura dele, mas no momento estavam de prontidão em Beuvar, esperando um ataque maciço dos Nove, que dia após dia se aproximavam mais. Os Templários de fato eram hábeis, uma vez que se tratavam dos melhores guerreiros e clérigos de toda Ophir, mas não eram páreos para o poder incomensurável dos Arautos do Caos. Porém, seu líder despertou após ouvir um chamado distante dos Senhores e, enquanto dava seus primeiros suspiros de vida após uma longa escuridão, era abençoado com uma parcela dos Poderes de cada entidade do divino Panteão; com o poder de um Relâmpago, a impetuosidade de um Redemoinho, o controle da Matéria, o ditame sobre a Criação, a força da Natureza e o domínio do Clima, Achlon II ergueu-se altivo novamente. Conjurando uma montaria mágica nunca antes vista, alçou vôo rumo sua cidade, onde em apenas alguns minutos estaria comandando a resistência definitiva contra as forças do Mal. Lá encontrou suas tropas e mesmo sem ter certeza absolutamente de quem era seu mais novo capitão, os Templários o seguiram cegamente ao campo de batalha, onde esperariam sem medo algum a chegada dos Nove. Seria sem dúvida nenhuma uma batalha épica...
E certamente foi. Com um sopro feroz o rei Achlon II derrubou os Nove de seus hipogrifos carniceiros, mas em uníssono os Arautos do Caos reagiram, e com um feitiço desconvocatório sumiram com a montaria de Achlon II. A princípio era apenas uma disputa de poderes, com feitiços variados de ambos os lados do confronto, embora nenhum causasse muitos danos ao adversário. Em pouco tempo tornou-se evidente que a batalha seria decidida no combate direto, e os Templários vibraram quando viram os Noves abandonar os céus e se aproximar de maneira limpa, mas o antigo senhor apenas observou. Porém, no instante em que o conflito se acirrava, iniciou uma prece que mudou o rumo do Mundo, atingindo seus guerreiros de maneira indescritível. Eram simples palavras de fé, mas por algum motivo os Cavaleiros de Achlon tiraram forças de um poder nunca antes visto. Emocionados, os Templários derrubavam os Cavaleiros do Demônio um a um, sem explicação alguma, reduzindo-os ao que eram antes, simples aprendizes de mago. Oito já haviam perecido, mas quando faltava apenas um, algo ainda mais inexplicável ocorreu: o último Arauto tragou os corpos inconscientes dos feiticeiros caídos, unindo suas essências a dele. Então ele se ergueu, gigantesco, o Titã do Demônio, uma criatura de 150 metros e forma indefinível, ora humana, ora celestial. Percebendo que era algo fora da alçada deles, os Templários largaram suas armas e iniciaram uma prece, então foi a vez de Achlon II revelar sua verdadeira face, emergindo na figura igualmente titânica de um vingador alado, ou somente um brilho uniforme segundo as pessoas que presenciaram a cena. O que aconteceu depois é inenarrável, mas o que pode ser dito é que horas depois os corpos sem vida dos membros do Conselho dos Magos foram encontrados, e ao lado deles jazia a antiga armadura do rei Achlon Jeremias II.
Do ponto de vista divino o que pode ser relatado é complexo, embora não incompreensível: o rei Achlon II voltou a adormecer após derrotar os Nove, encontrando junto de seus antepassados um leito confortável, e na companhia poderosa deles nunca mais sentiu vergonha. Seu corpo, porém, era grandioso demais para este Plano e nunca foi encontrado pelos Templários. Quanto aos Arautos do Caos, o Nada reclamou suas almas e todos aqueles ligados a eles, inclusive familiares e até mesmo conhecidos, tiveram suas existências eliminadas deste plano e juntamente deles perderam o direito de Ser. Agora voltando ao plano terreno, o fim da guerra também significou o término do período das Cruzadas, uma vez que ficara devidamente claro o que aconteceria com quem fosse longe demais nos conhecimentos arcanos. A partir daquele dia muitos passaram a se referir a magia arcana simplesmente como a Ruína, assim como o fenômeno que ocorre ao desobedecer o equilíbrio natural das coisas.
sábado, 4 de agosto de 2007
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